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Filhos de Um Deus Distraído

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Filhos de Um Deus Distraído

Voz às Bibliotecas

2021-03-05 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Porca alemã, porca alemã, porca alemã, agredia-me a minha Mãe com um cabide até a madeira rachar. Chamar-me porca nazi doía-me mais do que as pancadas do cabide no meu corpo indefeso de menina. Para nós, os doze mil descentes da Segunda Guerra Mundial nascidos na Noruega, filhos da guerra, filhos de um Deus distraído, o inferno da guerra nunca terminou, o inferno perdura até hoje na bela democracia norueguesa. Nas primeiras décadas deste século ainda há quem nos cuspa e nos insulte na rua. Escrevo em nome desses inocentes cujas vozes emudeceram no tempo, no desamor, no preconceito e na morte. As nossas histórias remontam aos anos da ocupação da Noruega pelas tropas alemãs. Instigados pelo programa Lebensborn, congeminado na mente diabólica de Heinrich Himmler, um dos cabecilhas nazis, os soldados germânicos eram encorajados a procriar com as mulheres dos territórios ocupados. O eugenismo nazi pretendia o apuramento da raça superior, a raça ariana, cabelos loiros, olhos azuis, pele clara, gente bonita, forte, saudável, gente povoadora da futura Germânia, o império expansionista almejado por Hitler, o facínora, o tirano, o megalómano conquistador. Algumas mulheres sucumbiam aos encantos dos soldados, apartavam a razão e abraçavam a paixão. Outras eram por eles violadas.

A guerra emprenhou mais de doze mil mulheres, mulheres embarrigadas pelos seus desprezadas, pelos seus aviltadas, mulheres de cabelos rapados na praça pública desnudadas, a cruz gamada na pele pintada, na pele enlameada, Putas nazis, putas nazis, putas nazis, mulheres solteiras, desamparadas, mulheres largadas pelos efémeros amores da guerra que para a Frente Russa eram enviados. Muitos por lá morriam, doentes, enregelados, baleados, pelo demiurgo Hitler abandonados, o pretenso salvador da pátria que não admitia rendições, largados pela elite nazi incapaz de enfrentar o poderio das tropas russas e o Inverno de trinta graus negativos. As mulheres em quem plantaram as sementes da vida no país delas desesperavam, mulheres malvistas que abriram as pernas ao inimigo usurpador de terras, riquezas e virtudes florais, mulheres que pariam os filhos do ódio nas instituições do programa Lebensborn, outras pariam-nos sozinhas, escondidas, como se ao dar vida cometessem um pecado de morte.

Algumas conseguiram ficar com os filhos, outras entregavam-nos contra vontade para serem adoptados por famílias nazis, outras depositavam-nos em orfanatos. As feridas de todos não cicatrizaram no pós-guerra. A culpabilidade do sangrento conflito, da monstruosa máquina da morte e do sofrimento, era descarregada em nós, inocentes crianças, estigmatizadas pelo sangue do inimigo que nos corria nas veias. Na escola primária chamavam-nos prostitutas alemãs, panascas alemães, escarravam-nos, urinavam-nos, ante a passividade e os risinhos sarcásticos dos profes- sores. Nas quintas exploravam-nos como escravos, maltratavam-nos, achincalhavam-nos. Nos orfanatos e nas instituições para alienados, onde convivíamos com pessoas portadoras de doenças mentais graves, sofríamos humilhações terríveis. Éramos escaldados em água a ferver, esfregados com piaçaba e amoníaco até a pele queimar, para os piolhos, as pulgas e as obsessivas enfermidades aniquilar. Éramos trancados por dias em pocilgas, abafados pelo fedor e o insuportável calor, comíamos levadura e bebíamos água choca.

Éramos violados pelos tutores, pelos pedófilos que lhes pagavam o aluguer da carne tenra e a devolviam em braços e a sangrar, pobres crianças penetradas, maculadas, corpinhos e almas rasgadas, meninos e meninas incapazes de caminhar. Em casa diziam que éramos a imundice, os suínos alemães deixaram-nos a sua esterquice, repetiam, a diário, ofendidos com a nossa presença, com o estorvo dos filhos da guerra que lhes impediam de olvidar o amargurado passado. Éramos e somos o bode expiatório dessa guerra, desse ódio, desse desprezo, nós, meras crianças, meros adultos que sobrevivem na vergonha e no estigma dos crimes que não perpetraram. Muitos de nós suicidaram-se. Foi a raiva que me alimentou todos estes anos, foi também a ânsia por justiça, uma justiça que nunca se fez, que nunca se fará. Cento e cinquenta e nove de nós recorremos aos tribunais da Noruega e ao Tribunal dos Direitos Humanos de Estrasburgo. Alegámos que o Estado norueguês nos negligenciou, sublinhamos a sua omissão na nossa protecção. Todos os tribunais invocaram a prescrição. Nós, filhos de um Deus distraído e de uma justiça cega, queríamos um pedido de desculpas, um reconhecimento do nosso infindo sofrimento. Essas atenções nunca até nós chegaram.

As guerras no Mundo não terminaram. O Homem é um ser sedento de poder, um ser bélico, um eterno predador. É urgente proteger as crianças vítimas da guerra, filhos do rancor. A convenção da O.N.U. não é suficiente para salvaguardar os seus direitos. Estas crianças precisam de uma convenção específica que as proteja. No meu infortúnio, tive a sorte de ter a tia Marie que me amparava, me mimava, mostrava-me o meu valor. A tia Marie amava-me. No seu difícil encargo de gestora de uma casa com doze pessoas, a minha tia arranjava sempre tempo para mim. Todas as crianças do Mundo, na guerra e na Paz, deviam ter uma tia Marie.

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