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Braga, sexta-feira

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Fernando Alves

As férias e o seu benefício

Fernando Alves

Escreve quem sabe

2023-12-07 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

É triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
Ruy Belo

Aporta da rádio bateu. Lá dentro, há um gelo fino que não cintila. Sente-se a falta na boca. Adivinho o olhar a percorrer o corredor sem o deslumbre da madrugada, bem longe do gérmen que detonou na cave do número 32, da Rua da Ilha do Pico, em Arroios, Lisboa. Foi por aqui que uma voz africana, parida em Benguela, assombrou. A TSF nascia e com ela o perfume da palavra de Fernando Alves, o meu Deus da rádio e de tantos que cultivam o bem falar.
A voz mais bela da telefonia disse adeus. Amargura-me saber que desligou a luz com o olhar avinagrado: «Não fazia mais sentido estar ali». Jamais o microfone voltará a ter o golpe de asa, o sopro do verbo, o acasalar da frase, o desnorte da pontuação que clama silêncio.
As manhãs ganharam vazio. As tardes são imóveis. As noites, pólvora seca. Não há laço que desenlace o boçal dos dias. Desde fins de setembro que é assim. E vai ser assim. Tudo que gravita está na mão do circo. O ouvido não trepida com os canhões da Europa, com a fome dos mesmos e com o divórcio dos glaciares. Antes, o olimpo tinha hora certa. Sinais com décadas de maresia e espanto. Tudo era sacudido. Um embarque onde inalávamos o odor da gaivota, o estalo da onda ou a imberbe névoa que recompõe o sorriso.
Em 1993 conheci este pescador do tempo. Foi na capital, na Avenida de Ceuta. Extravasou todo o fulgor que tinha pincelado. Mais do que conhecia. Mais do que supunha conhecer. Era todo libido. Do nada, rasgava frases, colocando-as num patamar improvável. Casava e descasava relatos. Na mesa, alunos em transe. A maior parte, como eu, fascinada pelo que exercia no imortal “Postigo da Noite”.
Por ironia, há 10 anos – acompanhado pelo homem que ainda assina na TSF a rubrica “Fila J”, José Carlos Barreto – tive o privilégio de o ver onde estendo os meus dias. Trazia as costas num oito, longe da rebelião de espírito do primeiro encontro. Um esgar de dores que não impediu o enlevo que senti 20 anos antes. Tarde farta, poesia à mesa, partilhada por entre carne barrosã, regada pelo socalco de um Douro inesquecível.
Uma década depois, “O olhar perto do chão” é a valsa sem par que nunca quis sentir. Último rabisco que revela desencanto e perda por tanto que a rádio foi e já não é. Um deixar cair quando, em tempos, o tudo sabia a pouco. Salva-se o tempo: «resta-me muito tempo para me sentar a ver passar os tristes». Madrasta era, com cheiro a fel.
A rádio deixou de ser vadia. Não bebe, não fuma, não se despe. Não rompe a calçada. Passou a ter relógio sem ponteiros. Sapato engraxado. Usa perfume. Tem cabelo alisado. Passou a faltar-lhe o rasgo. O microfone aberto sem rede. Vê a liberdade num espelho. Vagueiam desamores no monitor, longe do papel e da esferográfica. Escasseia o cheiro e o tesão de informar. De irromper a cortina. Falece à voz de quem diz que manda.
Esta é a minha última crónica do ano. O que aqui deixo foi o que mais me amolou. Um desgosto que assusta esta liberdade que não me causa nervo.
Queria ter espanto nos dedos. Ler o peso da vírgula. Não adoecer no esperado. Ouvir o ruído vagabundo e imaginar a força do contraditório. A dança das cadeiras. O grito do direto. A chuva inclemente. O sol abrasador. O frio de espinha. O cabelo ao vento. A volúpia quando bate a hora certa.
Um dia Fernando Alves escreveu-me: «a coragem é inimiga do medo». É nela, tantas vezes, que resisto à complacência do que me envolve. Acredito que tudo está escrito e que chegará o tempo de sentir a liberdade do vento. Irei procurá-la, quem sabe, em «bancos de jardim, à sombra».
Nesse dia, repousarei no postigo da noite os meus sinais de outono.

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