De alunos para alunos no Conselho EcoEscola da ESMS
Voz aos Escritores
2020-10-09 às 06h00
Lia eu o «D. Quixote de la Mancha», de Miguel de Cervantes, e a apreciação de Sancho sobre o seu senhor, crismando-o como o «Cavaleiro da triste figura». Lembro-me de ter parado neste crisma, e de refletir sobre adequações entre sentimentos básicos, estados anímicos, e figuras. No caso presente, «figura» remete significativamente para D. Quixote, pessoa considerada importante pelo seu aio Sancho. No percurso indagativo, frequentei Aristóteles, as figuras silogísticas dos «Primeiros analíticos», e deduzi conclusões sobre os modos, sobre o jogo intelectual que tais figuras proporcionam. Estava, nesse momento, longe de pensar nas múltiplas possibilidades significativas da palavra «figura», que percorrem a ilustração, a fisionomia corporal, a configuração, a personificação, ou a representação simbólica de algo. Até que esbarrei com Ludwig Wittgenstein, no seu postulado fundamental: a nossa linguagem e o nosso pensamento têm sentido e referência porque são representações, figuras ou pinturas das coisas do mundo.
No âmbito da fisionomia corporal, é figura o corpo e o rosto, o semblante e as feições; na ilustração, é figura a efígie e o desenho, a gravura, a imagem e a pintura; na configuração, é figura a forma, o formato e o contorno. É, no entanto, na representação simbólica de algo, na metáfora ou na alegoria, que a figura se complexifica, porque mais alto vai o pensamento e mais rigorosa de expõe a linguagem.
São, para nós, figuras de destaque a materna e a paterna, as políticas, para o bem e para o mal, ou as literárias, quando embarcamos emocionalmente nelas. No âmbito linguístico e retórico, são destacáveis a figuração lexical, a sintática e a do próprio pensamento, ou porque embelezam e enfatizam a expressão das ideias, jogam com o significado das palavras e com a estruturação das frases. No limite, estas são figuras do contraste, da subtileza e da beleza, tudo arte na exposição do pensamento.
A arte figurativa representa, com a maior objetividade possível, coisas ou figuras da natureza, incluindo-se aqui o ser humano; a arte abstrata, opondo-se ao realismo e à fotografia, muda de figura nas formas de figuração. Não sei se faz boa ou má figura, porque tudo depende da forma como se recebe o objeto artístico. No que me diz respeito, gosto de arte figurativa. Não desdenho, porém, a representação onírica com matizes tonitruantes, do tipo adamastor, figura robusta e válida de grandíssima estatura, olhos encovados e dentes amarelos. Tenho relevado, aliás, a este propósito e em diversas circunstâncias, a arte extraordinária do meu amigo A. Dias Machado, e vejo nela características que costumam devir norma, moda ou figurino. Fazer como manda a figura modal, simbolizada, ou como manda o figurino, significa ultrapassar o real e, eventualmente, a própria figuração.
Neste jogo retórico, em que nunca sabemos se o real é a figuração ou vice-versa, sobressaem, pela natureza inevitável do que é político, as figuras, os figurantes e os figurões.
As primeiras, representantes límpidas da natureza pura, germinam com dificuldade em terrenos áridos, mas germinam e constroem futuro; os segundos, balouçando ao sabor das ondas e dos ventos, agarram-se aos troncos que percorrem, porventura, os seus especados olhos; os últimos, esses espécimes surgidos do ventre da hipocrisia e da grande mãe vigarice, erguem o alucinante dedo e, de dentes maravilhosamente brancos, decidem, sem vergonha nem pudor, o nosso elegíaco destino. Resta uma pergunta: perante isto, devemos fazer figura de urso, jardinar, como fez em tempos o desiludido Wittgenstein, ou agir, como faz o destemido inteligente?
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