E a guerra continua...
Voz aos Escritores
2022-11-18 às 06h00
Longe vai o tempo em que um grupo de amigos, unidos pelo amor ao futebol, decidiram criar a FIFA, nascida em 1904 na Cidade das Luzes, e longe vai o tempo em que o futebol era simplesmente uma paixão que iluminava jogadores, dirigentes e adeptos sem as duvidosas amarras do dinheiro e do poder, casamento secular e por conveniência que faz girar o Mundo como as bolas rebolam pelos campos de relva ou de terra-batida, bolas de trapos ou elaboradas bolas de couro das prestigiadas marcas que se alimentam da euforia lucrativa do futebol.
Volvidas três décadas da constituição da FIFA, a politização do futebol roubou-lhe a inocência e a imparcialidade. Governantes despóticos aperceberam-se do valor do futebol na propaganda das suas ditaduras, assim o vislumbrou Hitler e a sua comandita de sequazes nazis, e Videla, o carrasco argentino apoiado pela FIFA, fez do Mundial de Futebol na Argentina de 1978 um baluarte do seu regime tirânico.
A FIFA, ofuscada pelo casamento do poder com o dinheiro, vendeu-se a governantes e industriais, patrocinadores que lhe abriram o dique da fortuna salivosos dos lucros dos seus produtos publicitados globalmente.
Inebriada de supremacia, a FIFA é a instituição que organiza o evento mais assistido do Mundo, o mundial de futebol, numa incongruência que colide com as democracias por ter a seu cargo, em simultâneo, a organização e a jurisdição do desporto-rei, um desporto que mexe com as emoções dos adeptos, remete-os às boas memórias da infância, dá-lhes a adrenalina que os faz olvidar as agruras da vida, uma fórmula mágica que os distancia da podridão que sustenta o futebol. Quem clama por moralidade se os investimentos em craques dão tanta alegria às massas?
Quem pede justiça e respeito pela dignidade humana ao torcer pelo seu clube do coração ou pela selecção do seu país? A paixão, por vezes vício, do futebol, fecha os olhos aos milhões de adeptos que não querem ver, ou fingem não ver, a corrupção no futebol, o branqueamento de capitais através da lavagem desportiva, as fraudes fiscais, os abusos de confiança, o tráfego de narcóticos, de armas e de pessoas, uma máquina diabólica e soberana, um polvo gigante cujos tentáculos se estendem aos cinco Continentes da Terra.
Em diversos países membros da FIFA, olheiros e treinadores acenam o sonho de uma carreira futebolística de prestígio a meninos famélicos de pés descalços chutadores de bolas de trapos, compram-nos à miséria da família por tuta e meia, um sonho podre embrulhado nos execrandos meandros da exploração e da pedofilia. A FIFA, ao contrário de usar o seu poder e visibilidade para melhorar o Mundo, contribuí para a continuidade da sua obscuridade e a perpetuação das infracções, do enriquecimento ilícito e da indecorosa hipocrisia.
O Mundial do Qatar de 2022 é prova dessas contribuições malsãs. Por detrás deste evento à escala mundial há favorecimentos, corrupção e tráfego de armas. O que esconde o Mundial do Qatar, um país pequeno, rico emirato do Golfo Pérsico que possuí a terceira maior reserva de petróleo e de gás natural do planeta? O que oculta o campeonato mundial num país que gastou 200 mil milhões de euros neste evento, valor equivalente ao PIB anual de Portugal, e que terá uma audiência estimada de cinco mil milhões de pessoas?
O véu núbio do Mundial do Qatar pactua e encobre a violação dos Direitos Humanos, a subjugação das Mulheres que, entre outras imposição legais discriminatórias e humilhantes, necessitam de autorização masculina para casar, trabalhar e viajar; esconde a exploração laboral na edificação dos sessenta e oito estádios e luxuosas estruturas envolventes, 6751 mortos, 12 por semana, escravos vindos da Índia, Bangladesh, Nepal e Sri Lanka, mal pagos, a trabalharem em condições desumanas 12 horas por dia sob um calor tórrido de temperaturas que alcançam os 50º centígrados, impedidos de regressarem aos seus países e de trocarem de emprego por os patrões-capatazes lhes reterem a documentação, escravos cativos da ganância, mortos pela avidez inescrupulosa cujas famílias não receberam qualquer indemnização; a cortina do Mundial adorna as grades dos presos condenados por homossexualidade, ilegalidade punível até sete anos num país anfitrião que desencoraja as demonstrações de afectos e defende, numa ignorância e tacanhez medieval, que a homossexualidade é uma doença mental e que todos os visitantes, que assistirão aos jogos nos sessenta e oito refrigerados e pomposos estádios, terão de respeitar a mentalidade do país que os recebe com ostentação, braços calculistas abertos e duas pedras na mão.
A FIFA é o espelho do Mundo e o futebol o ópio do Povo. Os intocáveis, apesar dos complexos processos de investigação de que são alvo, assim permanecem, intocáveis, de bolsos cheios e offshores forradas de milhões, porque todo o ser humano tem um preço e o dinheiro e o poder nutrem-se das pobrezas de posses e de espírito dos povoadores da Terra, planeta de perene rotação e translação em torno do Astro-Rei, como a bola de futebol, que no seu incessante rolar encandeia multidões, calcina milhares e ascende poucos à glória.
Tenho pena de gostar de futebol.
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