Correio do Minho

Braga, terça-feira

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Estátua de Palavras

A responsabilidade de todos

Conta o Leitor

2018-08-10 às 06h00

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Autor: Gaspar Oliveira

Pedro tinha dez anos e era muito malandro. Não havia dia em que não fizesse uma dúzia de asneiras. Aliás, ele morava mesmo nessa aldeia das trapalhadas, mesmo ao lado da dos bem comportados, lá para os lados do Minho.
Ia todos os dias à escola mas a professora rezava para que o Pedro faltasse pelo menos um dia. Mas, ou não sabia rezar ou Deus andava muito ocupado a perdoar os pecados do rapaz e não a ouvia.
Pedro acordava todos os dias às duas horas da madrugada para ver o pai ir pescar. Adorava o pai, homem dos seus cinquenta e poucos anos, cabelos grisalhos e forte como um touro. Antes de partir para a faina, ia à cama do filho e fazia-lhe umas festas no cabelo, dizendo:" Não aprontes nada hoje! Toma bem conta da tua mãe". E riam-se ambos.
Pedro ficava na janela à espreita, a ver o pai descer a ladeira em direção ao mar. Então levantava-se e em pijama, subia a ladeira e dizia-lhe adeus. O pai também lhe acenava com a mão, mesmo sem se virar.
Todos os dias, antes de ir para a escola, o Pedro tinha de ir visitar o seu cão Leão que morava no fundo do quintal, no canto estreito, nº 5, mesmo ao lado da praça das galinhas e em frente à alameda dos coelhos. Estes nomes eram da autoria do Pedro que imaginava o quintal como uma grande cidade onde nunca tinha ido.
Mas o menino só tinha olhos para o mar, aquele mar enorme, tão azul a entrar-lhe pelos seus enormes olhos, também eles azuis, inundando-os de fantasias e viagens imaginárias no barco ”Glorioso” do pai. Um dia haveria de se esconder no barco e viajar com o pai.
Claro que todos os dias, no final das aulas, ia à praia deitava-se na areia e sonhava, enquanto o Leão corria, chapinhava na água e ladrava às gaivotas. Ali ficava horas sem se aperceber, depois subia à aldeia e sentava-se num canto da tasca do "Ti Joaquim" a ouvir as histórias do mar, contadas pelos velhos pescadores. Eram histórias de pescadores, de tanta bravura, que pareciam deuses. Pedro ali permanecia boquiaberto, ouvindo e viajando nos mares da sua fantasia.
Ao fim da tarde, voltava invariavelmente à praia para ver o sol pôr. E novamente navegava no seu barco pelos mares fora, descobrindo os mundos que séculos antes os portugueses não descobriram.
Mas uma noite não conseguiu dormir, a sua cabeça estava num desalinho de ideias, só aventuras, só sonhos. E então, esperou que o pai se levantasse e fingiu dormir mas logo que ele lhe beijou a testa e o cobriu com o velho cobertor, ele ergueu-se e saiu pela janela, correndo por entre os arbustos. O pai, como de costume, disse-lhe adeus sem se voltar mas já ele ia à sua frente descendo pelas dunas na direção do cais. Esgueirando-se por entre os canaviais, escondeu-se dentro do “Glorioso”, sob uma velha lona e cordas das redes da pesca. Ouviu a voz grave do pai e as saudações dos outros e o riso em uníssono de todos, típico da boa-disposição dos pescadores. O barco baloiçou e penetrou no mar, demasiado agitado, e a noite escura engoliu-os por completo. Acabaram os risos, agora mal se ouvia o roncar do motor pois o vento uivava tão forte que arrepiava. A noite escura ficou cada vez mais negra e o vento cada vez mais furioso. Espreitou por entre as redes e ouviu ao longe algumas vozes aflitas mas um raio cortou o céu e um trovão pôs fim ao seu sonho: um estrondo deixou-o sem ouvir e a noite rasgou-se numa luz arrepiante. O Pedro levantou-se mas logo foi atirado contra uns baldes com o baloiçar frenético do barco. Ao longe os homens também assustados rezavam a Santa Bárbara. De repente o barco começou a baloiçar, Pedro agarrou-se a uns bidões mas de nada lhe valeu pois foi arrastado pelo chão. O barco estava inclinado e a água do mar, gelada, invadiu-lhe o corpo. Ele gritou com todas as forças pelo pai mas só ouvia gritos ao longe de “salve-se quem puder”.
Pedro estava a tremer de frio e tão assustado que só imaginava monstros a toda a volta. Gritava pelo pai mas a água estava constantemente a entrar-lhe na boca. Agarrado aos bidões sentiu o embate de destroços e um corpo a tocar-lhe. Gritou e tentou afastar-se mas um relâmpado iluminou a noite e para seu espanto era o pai inanimado na água. Agarrou-o e puxou-o para si, sustendo-lhe a cabeça fora da água e colocou-o sobre um dos bidões, sua jangada improvisada. O tempo foi passando e a tempestade foi amainando, o vento sussurrava agora e o Pedro, a tremer de frio olhava agora para o céu estrelado, onde a estrela polar lhe sorria. Ele já não tinha medo, já não tremia de frio pois estava encostado ao seu pai que apesar de inanimado, o aquecia mesmo naquelas circunstâncias. A sua lívida face parecia sorrir-lhe e os dois ali estavam de face colada, num abraço que só a noite testemunhou. E adormeceu…
O Pedro acordou com um barco patrulha que acudiu ao SOS do pai. Pai e filho foram levados para um grande barco e todos os marinheiros lhe sorriam e apertavam a mão, dizendo: ah grande homem, foste um herói! Salvaste o teu pai! O pai olhava-o incrédulo, sem perceber como é que o filho que tinha ficado a dormir o tinha salvo.
Na aldeia sempre que o Pedro passava todos lhe acenavam e diziam que tinha sido um herói. E Pedro agora sentia-se grande, um homenzinho…e gostava de se passear pelas ruas. Agora, até a filha do homem mais rico da terra, lhe sorria, coisa que antes não acontecia, pois ignorava-o, bem, fingia não o ver.
O pai, então, sentia-se orgulhoso pelo filho e abanava a cabeça como a dizer” sem ti, eu seria mais uma estrela a brilhar no céu”
A professora entrou na sala e com ar sério leu um poema “Estátua de palavras” que tinha escrito para o Pedro, gabando-lhe a coragem e agora todos o olhavam de forma diferente. Ainda se recordam alguns versos: “no mar salgado, assustado e a tremer/ ajudaste o teu pai a renascer/rapaz como cresceste, és o meu herói!”. Pedro deixou de ser o malandro e era o bom exemplo a seguir. E agora já não magoava nem gozava ninguém, era sempre aquele que acudia a todos nas aflições, era para todos um amigo e um cavalheiro que todos admiraram. E tinha-se tornado num dos melhores alunos da sua classe.

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