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Estranha Forma de Vida

As emoções no outono

 Estranha Forma de Vida

Voz aos Escritores

2020-06-26 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Há gente que fica na história, da história da gente, e Amália assim ficou, entranhada na memória dos Portugueses e nos ecos do Mundo. Volvidos cem anos do seu nascimento Amália nem chegou a partir. Pertence aos raros imortais que se perpetuam nas gerações vindouras. Dizemos “Amália”, e quando alguém é conhecido só pelo nome próprio, já não pode ir mais além, afirmou-o Saramago.

Estranha forma de vida, improvável destino, o da cachopa descalça e roupas remendadas, xaile esfiapado, olhos negros profundos e tristes, que no Cais da Rocha em Lisboa se empoleirava num caixote e com a voz dolorida cativava turistas e marinheiros e os aliciava na compra das frutas, doces e souvenires que lá feirava, a cachopa arrancada da escola pela avó que a criara, a avó mouca aos pedidos da mestra que à matriarca implorava que deixasse a catraia estudar, esperta e inteligente com estudos daria gente, que não, teimava a avó, a rapariga era mais uma boca a saciar, apesar de franzina pesava no parco orçamento familiar, três anos de escola bastavam para que soubesse arrecadar sustento para o paupérrimo lar, um dos muitos que gritavam a miserabilidade da Lisboa do Fado, bairros bradados de tristeza e pobreza que se emaranhavam na sensibilidade de Amália, a menina esquálida que desde o nascer sentiu no corpo a provação e na alma a rejeição, largada pelos pais a cargo dos avós maternos, a angústia do abandono de berço que se enraíza até à cova, o pesar que soltava quando cantava num sentimentalismo sem par, Ó gente da minha terra, só agora percebi, esta tristeza que trago foi de vós que a recebi.

Amália desfila na Marcha de Alcântara, canta em verbenas e festas, trabalha como bordadeira, participa no Concurso da Primavera na disputa do título de Rainha do Fado, embeiça-se e casa-se com Francisco Cruz, um torneiro mecânico, ardente paixão que descamba em desilusão, o torvo sentimento de rejeição volta a ensombrá-la, Amália quis morrer, Todo o amor que nos prendera, como se fora de cera, se quebrava nesse dia, ó funesta Primavera, quem me dera, quem nos dera, ter morrido nesse dia, um sentir fúnebre que lhe acompanhou a existência, esse sentir profundo que a voz arrancava e as palavras de laivos divinos moldava, Amália a procurada pelos poetas e guitarristas que nela encontravam a essência da sua arte, Povo que lavas no rio e talhas com teu machado as tábuas do meu caixão, Foi por vontade de Deus que vivo nesta ansiedade, a inquietude dos inconformados, o desassossego dos que não ficam indiferentes ao próprio padecer e à dor de quem os rodeia e na arte cantam o desespero como se esse cantar pudesse mudar o Mundo.

Estreia-se no Retiro da Severa, enxota os desgostos de amor, recalca as tentativas de suicídio, vence as resistências familiares e canta poemas da terra e do mar, Amália canta e todos encanta, povo, marqueses, viscondes, jornalistas, escritores e toureiros num talento superlativo que não escolhe classes nem lugares, Amália é aplaudida de pé, Hã fadista, e tem o Mundo a seus pés, outro Mundo que lhe foi mostrado, sem o mérito de grande fadista ter sido beliscado, um Mundo endinheirado pelo banqueiro Ricardo Espírito Santo desvendado, de quem as más-línguas diziam ser amante, ao que Amália refutava, Se eu tivesse todos os amantes que me põem não tinha tempo para cantar nem saía da cama, amante secreto teve um, Eduardo Ricciardi, o “Pita”, o galã, Quem dorme à noite comigo é meu segrego, é meu segredo, mas se insistirem vos digo, o medo mora comigo, mas só o medo, mas só o medo. O amante da elite que a escondia por se envergonhar das suas origens modestas, a grande paixão da vida de Amália, um amante encoberto por cinco anos, findos os quais, de sangue-rubro na guelra de cantatriz, o enfrentou, Como é a nossa vida, andámos nisto há anos, até pareço a Severa?! O amante encolheu-se, invocou a mãe de sangue-azul, A minha mãe não deixa, fica malvista se eu desposar uma fadista, Amália agigantou-se empoderada pelas dores da rejeição, o que não nos mata torna-nos mais fortes, despachou-o na dignidade dos injustiçados, Então fique com a sua mãe. Amália emancipou-se, fez do Mundo o seu fado e deu o Fado ao Mundo. Amália a mulher livre, apolítica, a quem o Estado Novo usurpou a imagem, a usou para promover Portugal, Amália maltratada pelos Portugueses que a rotulavam de Salazarista enquanto ela em sigilo dava dinheiro e os anéis para alimentar as famílias dos presos políticos, recusava-se a cantar fados que minorassem a condição da mulher, negava-se a submeter às vontades machistas, com ironia cantava as pequenices da vida e com alma elevada os lamentos da amarga existência.

Amália a mulher livre porque Deus assim quis, que triunfou e o medo esconjurou, embalada nas melodias dos acasos que não procurou, desamarrada de preconceitos, iluminada, carimbada pelo timbre dos eleitos. Amália do cheiro, da cor, do gosto a Fado. Amália o próprio Fado, Almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras, na Mouraria canta o rufia choram guitarras, amor ciúme, cinzas e lume, dor e pecado, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Fado. Amália a bela mulher cujas pálpebras delineadas descerrava como cortinas de palco em meneios de padecimento e sensualidade, a mulher que de luto ilustre se vestia e em trajes de negridões honrava Camões, a diva que com o peculiar rodar das mãos agradecia às multidões. O que é o Fado? O Fado é tudo o que eu digo mais o que não sei dizer. Amália a voz de Portugal que numa estranha forma de vida nasceu pobre, engrandeceu e jaz no Panteão Nacional. A sua voz não se apagou, trespassa o silêncio, o tempo e as paredes tumulares. A tua voz perdurará, ad eternum, Amália.

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