Correio do Minho

Braga, sábado

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Eriksson

As férias e o seu benefício

Eriksson

Escreve quem sabe

2024-02-01 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

A vida é como uma sala de espetáculos. Entra-se, vê-se e sai-se.
Pitágoras

Há um gatilho que todos temos dentro de nós. Até ao tiro, andamos em mar alto. A princípio vislumbramos uma luz limpa. Não há manchas. Temos o abraço da falha, a algazarra da invencibilidade. Somos levianos porque acreditamos que o tempo é uma semente prenha. Chutamos os dias sem árbitro. Há uma bancada dentro de nós que percorre a linha lateral, dribla o corredor central e grita pelo êxtase.
Neruda espelha este pedaço de vida com placidez ao defender que «a verdade é que não há verdade». Tudo que é acossado é colocado por baixo do tapete, sem inquirir, sem noção que este tempo é como a onda do mar.
À medida que destilamos, surgem as primeiras páginas que não escrevemos. Ainda em alto mar, a luz continua estendida. Aqui e acolá, há fios breves. Não chegam a pintar. Apenas mostram uma ténue rugosidade, impalpável ao olhar. Por aqui, ainda vence a soberba da fala. O dedo sem ricochete. A palma da mão cheia de circo.
O indomável abranda com a idade. Afrouxamos a corrida. Uns conseguem sentir o cheiro da maresia. Outros julgam que a maresia são eles. Raros os que repensam a falha. Grosso modo impera a altivez no confronto. Há pouco silêncio no olhar.
Porém, a dado momento da viagem, podemos saber quando o gatilho vai disparar. Aqui, neste instante, acredito que o chão levite. Que tudo seja um sopro. Um torpor ondulante. Isto pode acontecer. Comigo e consigo que está a ler. Com quem priva, com quem ouviu falar ao de leve ou com quem nos entra casa dentro sem nunca lhe tocarmos.
Aconteceu com Eriksson. O treinador do Benfica em dois tempos. De 1982 a 1984 e de 1989 a 1992. Um cometa que aterrou em Portugal – já tinha encantado a Europa, nesse ano, com a conquista da Taça UEFA pelo Gotemburgo – e cedo cativou quem gosta deste desporto. Arrebanhou admiração. Pelo futebol que incorporou dentro das quatro linhas e pelo exemplo fora delas. Um cavalheiro com um discurso que chocou com a inflamação “Norte-Sul”, na altura vincada no universo Porto pelo saudoso Pedroto. Com o sueco ao leme, os encarnados regressaram a uma final europeia (Anderlecht, Taça UEFA, 1983) desde a praga Guttmann e a uma nova final da Taça dos Campeões, na sua segunda passagem (Milão, 1990). Pelo meio, Portugal começou a percorrer os corredores das grandes decisões. O F. C. Porto atingiu a final da Taça das Taças (Juventus, 1984), venceu a Taça dos Campeões (Bayern de Munique, 1987) e a Seleção Nacional pisava, pela primeira vez, um Europeu (França, 1984) e voltava a um Mundial (México, 1986), duas décadas volvidas. Por sua vez, Eriksson triunfava em vários desafios. Guindou a romana Lazio ao último título da sua história (2000), vencia a última Taça das Taças (Mallorca, 1999) e assinava como primeiro estrangeiro a liderar o destino da seleção de Inglaterra (2001 a 2006). Ainda foi andarilho na Roma, Fiorentina, Sampdoria, Manchester City, Notts County, Leicester City, Al-Nasr, Guangzhou R&F e Shanghai SIPG. A epopeia, em campo, fechou na seleção das Filipinas.
Eriksson respira classe e cordialidade. Foi neste exemplo – reforçada com a sapiência de Artur Jorge no F. C. Porto – que passei a respeitar o futebol. A não embarcar no rebanho, a parar quando o mais fácil era seguir em frente. Nessa amada década, está tudo que pontifico como o melhor que vi. Com a turba de jornalistas sedenta de sangue, é quase perturbante hoje constatar como um polido e discreto sueco atingiu o topo do futebol, indústria dominada por egos e não raras vezes pela mediocridade.
Neste correr dos dias, Eriksson anunciou que talvez não chegue ao final deste ano. Um avassalador cancro no pâncreas está a mirrá-lo. A acelerar os dias e a esgravatar as noites. Recordo quando um dia confidenciou: «a margem entre o sucesso e o fracasso é fina como uma lâmina».
São estes rasgos que apagam a luz do mar alto. Uns aparecem sem bater à porta como o que vimos há 20 anos quando tombou em Guimarães o futebolista húngaro Miklos Fehér, vítima de uma paragem cardiorrespiratória. Outros apontam uma data próxima. Acredito que doa mais. Morrer com a lâmina nos olhos. Avistar o nevoeiro. Vê-lo a entrar com bilhete sem retorno. Terá a gaivota o condão de amaciar o tiro?

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