Ettore Scola e a ferrovia portuguesa
Escreve quem sabe
2020-12-21 às 06h00
Durante uma viagem a Mysore, o taxista parou de rompante. O silêncio prevaleceu, o trânsito estagnou. Do lado direito da selva lança-se à estrada uma imponente naja indiana. Parece mirar-me nos olhos enquanto serpenteia na poeirenta estrada até à outra margem. Vários indivíduos encontram-se inertes, agachados sobre raquíticas pernas e pés encardidos. Permanecem ali parados como se tratasse de uma prática de adoração habitual, debaixo de estreitas cabanas construídas com barro e tiras de bambu. Os tetos, forrados a chapa e lona, permitem que a sombra se estenda ao comprido e lhes apazigue o dia de intenso calor. Do lado esquerdo, vejo diversos cachos de bananas e carne seca, pendurados por pequenos ganchos. O intenso odor dos arredores é nauseabundo, sinto-o pela vidraça. A vendedora gesticula-me através da janela, pobre coitada, tenta a sua sorte no meio de tanto inseto e do calor abrasador. Mesmo em frente vejo um pequeno templo hindu. No seu exterior vislumbro algumas crianças molhadas. Retiram minúsculos peixes de um balde enlameado, pousando-os ainda semi vivos na terra. Fazem a contagem com o dedo indicador. Uma enfezada vaca passeia com olhos caídos, serena rainha por entre dezenas de velhos ‘tuk tuks’ e um minúsculo autocarro atulhado de gente. Todos permanecem imóveis à sua passagem, dando prioridade a sua majestade. As buzinas deixam de fazer ruído.
Inquieto, procuro uma justificação para a suspensão do barulho ensurdecedor das buzinas. Relembro David Hume e a doutrina empirista, a sua crítica aos princípios de causalidade e necessidade, e os conceitos de hábito, costume e crença. Imagino a possível relação entre as travessias da cobra, da impetuosidade da vaca, que calma-mente passeia pela estrada, e a ausência de qualquer ruído em redor.
Do gancho que acolhe a carne pútrida naquele místico país do oriente, até às suas tradições e costumes, cogito acerca da pluralidade axiológica e da sua mutação, tanto sincrónica como diacronicamente. Transporto-me para a minha secretária onde repousa o livro ‘Hooked’ de Nir Eyal. Este livro aborda a necessidade de se criarem produtos que otimizem a qualidade de vida dos utilizadores, explorando o conceito de hábito à luz da psicologia cognitiva. Segundo este autor, um ‘hábito’ corresponde a um reflexo comportamental inconsciente. De uma forma simplificada, diz respeito a uma ação auto- mática, espoletada pelo nosso cérebro, por forma a colmatar algum tipo de desconforto ou necessidade. Para o autor, os produ- tos que formam hábitos devem funcionar inicialmente como vitaminas para o cérebro, ou seja, não solucionam problemas mas trazem algum benefício. Uma vez criada a habituação no cérebro, as vitaminas transformam-se em analgésicos indispensáveis, tal como o consumo/compra do produto se enraíza e ajuda a suprir a necessidade, convertendo-se num hábito.
Durante as repetidas visitas à India e a Mysore, assisti a diversos exemplos de adoração. Aprendi a reconhecer e a respeitar os hábitos dos nativos, os seus costumes e as crenças. Aprendi a apreciar a relação entre a buzina estridente e a sinalética de alerta. Aprendi a contemplar a vaca, considerada um animal mais puro do que algumas castas superiores, daí a sua adoração plena.
Durante a leitura de ‘Hooked’, mergulho num mundo cada vez mais competitivo onde as empresas apenas sobreviverão se tiverem a capacidade de se focarem no consumidor e capacitarem os seus produtos de vitaminas suficientes para os transformarem em analgésicos essenciais. Empresas como a Google e o Facebook já garantiram a vinculação dos utilizadores, produzindo conteúdos/ estímulos repletos de vitaminas que nos impelem, quase inconscientemente a “consumir”, transformando-os numa verdadeira necessidade diária, qual analgésico!
*com JMS
10 Outubro 2024
08 Outubro 2024
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