Bibliotecas comunitárias
Voz aos Escritores
2021-03-19 às 06h00
A vida é feita de nadas: De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
Miguel Torga
Numa semana pejada de simbolismo (dia do pai, começo da primavera e dia da poesia) não podíamos deixar de abrir com “Bucólica” de Torga, poema que tem por tema a natureza, a vida campestre e a referência à figura de seu pai, valorizando o afeto do homem pela terra-mãe.
Podemos dizer que é a ruralidade que confere a grandeza ao poema, a vida como um conjunto de realidades aparente- mente insignificantes que nos rodeiam, histórias e emoções que perduram na memória de cada um de nós. Perpetuar essas referências rurais é, obviamente, produzir valor. Trata-se, pois, de preservar não só o que temos, mas sobretudo o que somos, valor esse que parece, por vezes, olvidado. Por isso, é no próprio pseudónimo do escritor “Torga” que colocamos a esperança de que a poesia contribua para a proteção da mãe natureza. Vejamos como a urgueira (a planta das torgas) é valiosa pelo seu contributo para a biodiversidade, pois as abelhas, polinizadoras de excelência, cujo trabalho sustenta os ecossistemas, recorrem às suas flores para produzirem o mel que sabe a sol e a serra.
Embora saibamos que não há referências ao pai na poesia portuguesa, com raríssimas exceções, senão na das últimas décadas, a quase totalidade dos pais presentes nos poemas é rural e a sua recordação na palavra dos filhos-poetas é também a recordação de uma certa ruralida- de, de uma ligação aos ofícios e à terra, de uma memória dos ciclos da natureza. Para José Jorge Letria, o pai é mesmo o próprio poema, leve como a brisa e com frescura de bem querer.
Também Vinicius de Moraes homenageou a vivência e a sabedoria de seu pai:
Meu pai,/ dá-me os teus velhos sapatos/ manchados de terra/ dá-me o teu antigo paletó/ sujo de ventos e de chuvas […]. Para Pablo Neruda o pai é “Terra de semeadura inculta e brava,/ terra que não tem estreitos nem sendas, […] e para Manoel de Barros a terra é mesmo a voz do seu pai que, na sua ausência, tanta falta lhe faz: Não ouço mais a voz/ de meu pai./ Estou só. Estou simples./ Não como essa poderosa voz da terra/ com que me estás chamando, pai […].
Comum a todos os poetas é o sentimento de ausência. Ausência que procuram preencher com a evocação da figura do pai, recolocando-o no mundo através das memórias, sendo a morte a lembrança mais marcante. Para José Carlos de Vasconcelos, por exemplo, evocar o pai significa recordar um hábito que o torna especial. Poder-se-á dizer que predominam as recordações da figura do pai na infância do autor e de um convívio determinante com ela, pois em cada evocação recupera um mundo perdido: De manhã, meu pai vai ao mercado/ […] Ainda bem cedo, antes das aulas, vai comprar flores, /sob o esplêndido azul do céu./E a casa, depois, fica cheia de luz e ternura, gladíolos,/ frésias, verbenas, rosas bravas, […].
Hoje, a pandemia impede a realização dos encontros e celebrações habituais nesta época, nomeadamente o Dia do Pai, a chegada da primavera e o Dia da Poesia. Um tempo especial onde beijos e abraços não se regateiam. A necessidade de estar próximo opõe-se à necessidade de nos mantermos seguros. A proximidade física, subitamente, tornou-se uma ameaça e a preocupação para com os mais frágeis transformou-os em prisioneiros sem direito a visitas.
É claro que a impossibilidade de celebrar ao vivo e a cores faz mossa, mas há sempre uma forma de nos mantermos próximos. Espreitar os sorrisos, os dedos espetados, os olhares curiosos e os abraços faz muita falta. Contudo, a COVID não esmoreceu a vontade de criar. Apesar dos solos pobres, das rochas, do vento, das plantações de espécies invasoras e dos incêndios, nas serranias a urgueira vai persistindo e perfumando as cores da poesia. Assim, em Dia do Pai, continua a haver chá de urze com cheiro a primavera e a sonhos de maresia, tal como podemos ler em Emily Dickinson:
Nunca vi um campo de urzes.
Também nunca vi o mar.
No entanto sei a urze como é,
Posso a onda imaginar.
09 Abril 2021
07 Abril 2021
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