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Elas dançam sozinhas

As emoções no outono

Elas dançam sozinhas

Voz aos Escritores

2021-01-08 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Nos escombros da Segunda Grande Guerra erguia-se a Organização das Nações Unidas, sublinhavam-se os Direitos Humanos, a defesa da vida e da dignidade, a protecção dos desfavorecidos, a proibição das atrocidades cometidas sobre milhões de seres humanos em todo o Mundo. A Guerra Fria instalou-se no planeta e arrastou as mesquinhas disputas do poder, os interesses financeiros, a ambição das potências de governar a Terra e o Homem. A O.N.U. ficava bem na fotografia da História, e se ditaduras se aboliram, outras permaneceram e outras se erigiram diante da sonsa passividade dessa grandiosa instituição criada e sustentada em tão nobres propósitos. Em inúmeros países dos cinco continentes o poder ditatorial prosseguia sem punição. A impunidade dos déspotas e dos seus sequazes, carrascos de torturas, ladrões de vidas, maquinadores de desaparecimentos, foi e é a maior ameaça da Liberdade. Quantos fascistas Italianos foram julgados pelos seus crimes? Quantos Espanhóis franquistas? Quantos portugueses do regime salazarista responderam em tribunal? Quantos na República Democrática Alemã, que de democrática nada tinha, antes e após o derrubamento do Muro de Berlim? Quantos no Uganda, no Ruanda e em tantas ditaduras africanas? Quantos facínoras de Lenine e de Estaline? Quem foi julgado pelos horrores dos Gulags? Quantos criminosos de Mao Tsé-Tung e de Chiang Kay-Shek? O Tribunal de Nuremberga sentenciou um punhado de nazis, uma mera mancheia nos milhares flagiciosos que aniquilaram milhões de vidas e que escaparam com a conivência de outros países, mormente sul-americanos, e a cumplicidade da Igreja Católica. A hipocrisia das instituições não morreu na Segunda Guerra Mundial. A hipocrisia sobreviveu nas que nasciam e estendeu-se a outras ditaduras que floresciam e que se enraizaram na Terra.
Theo Van Boven, director dos Direitos Humanos das Nações Unidas, travou uma luta quase solitária contra a violação dos direitos humanos no Chile, em Espanha e na Argentina. Foi-lhe permitido criar uma “comissão de trabalho” para averiguações das atrocidades, uma comissão com um título politicamente correcto, pouco susceptível de erguer celeumas. A O.N.U. quer ser discreta, mas Theo Van Boven preza a sinceridade e expôs a nu e a cru as barbaridades cometidas no Chile de Augusto Pinochet, na Argentina de Jorge Rafael Videla e na Espanha de Francisco Franco, regimes de opressão, de tortura, de execução que aniquilaram milhões de seres humanos. Hoje os horrores persistem nos familiares das vítimas, as sombras tenebrosas do passado também os fazem vítimas na negrura de um presente contínuo, fantasmas que carregam, sofrimento que não olvidam, chagas que sangram sem estancar, filhos que ainda procuram os pais, avós que ainda procuram os netos descendentes das filhas prisioneiras a quem arrancavam as crias que se esfumavam nas brumas maquiavélicas do regime do terror, mães que ainda procuram os filhos, esposas que ainda procuram os maridos. Pior do que a morte de um ser amado é o desconhecimento do seu paradeiro. É um luto de espera. É um vazio pesado pendurado nos fiapos da inútil esperança, alimentado de terríficas suposições.
Depois do Camboja, Espanha é o país do Mundo com mais valas comuns, buracos atulhados de corpos torturados, violados, chacinados que a terra comeu sem lhes saber o nome, nem a idade, nem a naturalidade. Tumbas incógnitas dos sumidos da Terra, tumbas desertas de flores, cruzes, datas e epitáfios, fossos encobridores dos horrores. Há vozes que não se calam. Há vozes que suplicam por justiça. Há mais homens corajosos como Theo Van Boven, assim o é Baltazar Garzón, magistrado espanhol empenhado nos processos de averiguação e acusação de crimes cometidos nas ditaduras. Há vozes que cantam, não para espantar o mal mas para o denunciar, para o ecoar e o mostrar ao Mundo. Sting entoa a dor das chilenas, mulheres agrupadas por uma causa, por muitas causas, porque cada ser humano assassinado ou desaparecido é uma causa, mulheres que comungam o pranto bailando de branco, as fotografias dos entes queridos dependuradas nos pescoços como grilhões do eterno sofrimento, mulheres-anjos que se balançam ao som da impunidade, esvoaçam lenços brancos numa vã ilusão de paz, assim vão tropeçando nos anos arrastados, assim vão dançando sem par, They Dance Alone, Por que há tristeza nos seus olhares? Por que estão os soldados aqui com as suas caras de desprezo estáticas como pedras? Elas dançam com os desaparecidos, elas dançam com os mortos, elas dançam com os amores invisíveis na sua angústia emudecida. Elas dançam com os pais, elas dançam com os filhos, elas dançam com os maridos, elas dançam sozinhas, o único modo de protesto que lhes é permitido. Vi as suas faces silenciosas gritarem alto, se falassem estas palavras, também desapareceriam, outras mulheres nas mesas da tortura, que mais podem fazer, elas dançam com os saudosos.
Um dia bailaremos sobre as suas campas, um dia cantaremos a nossa liberdade, um dia riremos de alegria, um dia dançaremos enlaçados libertos de fardos, um dia...?

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