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Do rio Este ao Parque Norte

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Do rio Este ao Parque Norte

Ideias

2020-06-22 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

No dia 10 de Junho, escutei com particular atenção as palavras de D. Tolentino Mendonça que apelavam à reflexão, em particular enaltecendo as raízes e a necessidade de se estabelecer um pacto entre as nossas gerações, bem como a valorização da dimensão comunitária. Na minha opinião, foi um dos testemunhos mais memoráveis em Portugal, em que se colocou a fraternidade e a compaixão no centro da narrativa, destacando-se a importância dos valores e das ações que cada um de nós tem em prol do próximo e a construção de um país verdadeiramente em comunhão.
Houve um tempo em que atravessava diariamente a pequena ponte em direção à Escola Secundária Alberto Sampaio. Nesse tempo, vivia na Ponte, subia e descia diariamente as mesmas velhas escadas em direção à Rua dos Galos, onde aproveitava para mirar os velhos moinhos anexos ao Rio Este, para beber água fresca da pequena fonte e também sentir o leve cheiro da farinha saída das mós de pedra. Por ali, não só me recordo de ver o rio despido de cheiros e cores artificiais, como também de o atravessar descalço, por entre escorregadias pedras, vislumbrando aqui e ali pequenos cardumes de peixes que me acompanhavam em cada curta passada.

Do outro lado da cidade, nesse mesmo tempo, os terrenos eram praticamente agrícolas, vigorosamente verdes, nutridos de vida em flor. Por vezes, consequência de reminiscências de família, visitava-os com os meus pais. Escutava imensas histórias relacionadas com Real, Dume e Semelhe, das suas gentes e costumes, da perigosa exploração da pedreira, dos campos de milho anexos à Confeiteira e dos caminhos até à igreja de S. Jerónimo. Hoje, em modo de desconfinamento, aproveitei para passear pela zona. Para meu desalento, no meio do Parque Norte, observei dois mundos completamente opostos. De um lado, destaca-se a graciosa quinta pedagógica, felizmente ainda cheia de júbilo, onde o voo das borboletas comunga com a alegria das crianças. Do outro, não só testemunho a ganância refletida no interminável betão, como também mais um conjunto de altos e belos sobreiros traçados de branco, que rejubilam ingenuamente, desconhecendo que a curto prazo serão carvão numa qualquer lareira burguesa.

Permitam-me a analogia entre a natureza e o retalho. No retalho, existe uma problemática comum relacionada com as reduzidas margens, mais em particular na área alimentar. Uma das áreas que maior interesse suscita está relacionada com a análise e prevenção de perdas. Para quem não domina o tema, as perdas desconhecidas diferenciam-se das conhecidas na medida em que estas resultam de imprevisíveis fatores externos, tais como roubos, registo incorreto dos produtos no terminal de venda, más práticas no registo atempado de produtos danificados, entre outras. Estas perdas, denominadas como desconhecidas, são contabilizadas apenas e após uma contagem física de inventário, comparando-se a quantidade de inventário físico resultante com a posição de inventário registada naquele momento pelo sistema contabilístico. Ao contrário das perdas conhecidas, é muito complexo a qualquer retalhista definir medidas concretas para mitigar perdas cuja origem se desconhece. Em suma, o conhecido permite-nos agir melhor e gera uma maior sensação de controlo e poder, enquanto que o desconhecido gera uma sensação de impotência e uma errada perceção da realidade.

Vida e morte. Conhecido e desconhecido. Ganho e Perda. A visão dicotómica destes conceitos projetou-me para as semelhanças entre a natureza e o retalho. Se, por ignorância, desconhecimento ou interesses diversos, não vemos ou não reconhecemos a perda atempadamente, estaremos certamente a pôr em causa não só o sucesso do nosso negócio, como também o futuro do nosso planeta. Saber reconhecer o nosso património, conservá-lo, dar-lhe valor, estimá-lo e protegê-lo, significa respeito pela vida e pela natureza, ganho para toda a sociedade.
Debruço-me novamente sobre os dois mundos com que me cruzei hoje na minha caminhada. Decido percorrer e explorar o que me proporciona vitalidade e me permite reviver as sensações de criança. Provavelmente, condicionado pelas palavras proferidas por D. Tolentino, contemplo a natureza e encontro paz, tranquilidade, bem estar e harmonia. Já na reta final do passeio, avisto o outro mundo e considero-o uma perda para a cidade. Como no retalho, decido acreditar que a causa desta perda é conhecida e seria possível adotar medidas eficazes para evitar o prejuízo. Contudo, sinto-me impotente para travar a ganância, a ignorância e o desrespeito pela natureza, pela nossa cidade e pela vida. E vocês?

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