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Do Ferrari à bicicleta

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Do Ferrari à bicicleta

Ideias

2019-06-24 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

O meu velho amigo ligou-me extasiado. Comprou uma nova televisão de alta resolução. São 33 milhões de píxeis reunidos num só retângulo que permitem a visualização de detalhes tão precisos como a cor da íris de uma águia à procura do sacrificado roedor. Hoje foi a final da NBA. Aproveitei para o visitar e usufruir da sua nova relíquia, levando comigo uma sacola bem repleta de frescos tremoços, batatas fritas e meia dúzia de cervejas para degustar. Chegado a sua casa de módico tamanho, deparei-me com uma estreita sala e um sofá centenário, onde apenas cabíamos os dois. A televisão preenchia a parede frontal e o sofá situava-se a pouco mais de um palmo e meio daquela nova e imensa caixinha especial. A expectativa de ver aquele jogo de basquetebol com tamanha nitidez era enorme, estávamos ansiosos e com imensa vontade de desfrutar daquele confronto de titãs.
Naquele instante, enquanto ainda esfregava a retina pasmada com tanto brilho, o meu cérebro ajustava-se a tamanha precisão. Lembrei-me de repente de um episódio interessante, acontecido num retalhista bem longínquo. Naquela altura, o jovem colega, de raízes sul africanas, falava-me com imenso entusiasmo sobre o novo leque de aplicações comprados pela sua organização. Segundo ele, as expectativas dessas componentes tecnológicas eram tantas que já se faziam comparações com o novo modelo V8 da Ferrari. Sussurrava-se pelos tórridos corredores que a organização ia avançar, iria finalmente deslocar-se à velocidade da luz. Fiz-lhe, por momentos, uma observação, à qual me arregalou os olhos, sem pestanejar. Ainda hoje penso ter sido uma reação espontânea de um jovem espantado e com múltiplos receios mesclados. Sorrindo, perguntei-lhe: “preferias ter um Ferrari numa montanha, ou uma bicicleta seria suficiente?”. Por momentos, pensei que me iria dar a resposta de imediato, mas não o fez. Desde então, e durante longas semanas, fiquei silenciosamente à espera de obter uma resposta.
No decorrer daquele programa de implementação de diversas soluções tecnológicas, parte integrante de uma transformação de negócio que se afigurava duradoura, as expetativas iniciais de todos os intervenientes eram enormes. Principalmente para aquele jovem. Para ele, porventura contratação recente da organização e pouco habituado a projetos de tamanho calibre, o carro de gama elevada era aquilo que projetava, como qualquer jovem idealiza a árdua vida da atualidade. Imaginava um modelo capaz de atingir velocidades supersónicas e superar quaisquer obstáculos. Infelizmente, ninguém o tinha alertado que o contexto daquela organização se assemelhava a uma bela montanha bem alta, com estreitos trilhos e encostas íngremes.
Aproximadamente a meio do programa, recebi finalmente uma resposta por parte daquele colega. Dizia-me que talvez uma bicicleta fosse bem mais eficaz do que propriamente aquele belo carro de oito cilindros que projetara. Mesmo assim, devolveu-me um sorriso e ofertou-mo com uma pergunta. Consideramos que, depois da montanha, podemos ambicionar ter o Ferrari, não achas? Eu disse-lhe que sim, pois claro, na vida devemos sempre sonhar alto, mas nunca descurando os seus naturais percalços. Regressei então ao sofá. Não sei quanto desembolsou o meu amigo pelo seu novo acessório retangular, mas acredito que a sua intenção fosse não só a de cobrir algumas brechas na parede frontal, mas também desfrutar de maravilhosos momentos. Uma coisa é certa, aquela televisão era o verdadeiro Ferrari. Não estou certo de que aqueles momentos fossem tão prazerosos se tivesse adquirido uma bicicleta. Mesmo colada ao velhinho sofá, impetuosa, gigante e com ultra definição, conseguiu animar-nos durante o decorrer daquele intenso jogo. Relembramos juntos velhos tempos onde a bola alaranjada sobrevoava o garrafão e caía quase sempre, redondinha, naquelas redes.

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