Correio do Minho

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“Deixai Vir a Mim as Criancinhas”

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

“Deixai Vir a Mim as Criancinhas”

Voz aos Escritores

2021-10-22 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

A Colónia Dignidade, no Chile, era um paraíso fundado por Paul Schäfer, um ex-nazi fugido da Alemanha procurado por pedofilia e que no Chile encontrou o refugiu perfeito. A Dignidade foi o meu Inferno na Terra. Líder carismático, munido de uma eloquência invulgar, manipulador nato, Schäfer erigiu a sua colónia em territórios cedidos pelo governo chileno, um lugar resguardado dos males do Mundo que baptizou com o pomposo e irónico nome de Dignidade. Nesse lugar, tudo era praticado e dito na evocação do nome de Deus. Dignidade era uma seita comandada por Schäfer, composta por colonos alemães e chilenos. Deus comandava os gestos, as palavras, as atitudes, os pensamentos, um Deus que impunha os Seus quereres pelos mandos de Schäfer. Nesse lugar edílico apregoava-se os comportamentos exemplares aos olhos de Deus, um lugar onde a sombra do pecado pairava, oculta e omnipresente, na vida dos colonos guiados pelo discurso demiurgo e ditatorial de Schäfer, um lobo coberto com a pele de cordeiro que encaminhava o seu dócil e contricto rebanho segundo as Leis de Deus. ´
O ex-nazi apartava homens e mulheres, proibia-lhes intimidade, um pecado capital aos olhos do Senhor, homens e mulheres que trabalhavam sem salário, a quem confiscava os documentos pessoais, que entregavam as suas vidas à colónia, ao bem comum da seita, homens e mulheres prisioneiros no cárcere pelas suas mãos erguido. Laboravam horas infindas na manutenção da cerca que os protegia do abismo do Mundo, nos campos que lhes forneciam o alimento, na criação dos animais, na cantina, nas serrações, nas metalurgias, nos barracões têxteis, no hospital e nas escolas.
A colónia deveria ser autossustentável. A diário, sob a presença demoníaca e persuasora de Schäfer, lia-se a Palavra do Senhor, dava-se graças, pedia-se perdão pelos pecados, suplicava-se a absolvição. O hospital também servia a população chilena pobre e engrandecia a imagem de Schäfer, um benemérito que oferecia cuidados de saúde aos mais carenciados, que facultava instrução e pão aos meninos da colónia, alguns órfãos, outros filhos da miséria, outros frutos da cegueira negligente dos pais ofuscados pela bondade altruísta e religiosa de Schäfer, um enviado de Deus que ao Mundo viera para minorar as desigualdades da Terra, um abençoado, um iluminado, Cantemos ao Senhor cânticos de louvor, roguemos-Lhe a protecção do nosso benfeitor, Ámen, Ámen, O Senhor é meu Pastor nada me faltará e pela mão de Schäfer à bem-aventurança me guiará.
Era essa mesma mão que pelas noites escolhia e arrastava um menino para o quarto, o despia, o deitava, o masturbava, dele abusava como queria, o bom Schäfer com os meninos fazia o que lhe aprazia em nome do Senhor, O Salvador, e enquanto usava e abusava, o pedófilo orava, Deixai vir a mim as criancinhas, porque desses inocentes, pobres crentes, é o Reino dos Céus. A cada noite um menino. A cada noite uma violação. A cada dia o silêncio fortaleza. A cada refeição a prece de eterna gratidão, a Deus e ao pederasta a quem deviam a fé e o pão. A cada ano inúmeras vidas destroçadas. Quantas crianças torturadas? Como gere as emoções um adulto que foi um menino violentado? Como costura os retalhos das lembranças sujas, dos lençóis pegajosos, das almofadas empestadas pela pestilência do violador? Como explica que foi vasculhado pelas mãos de quem confiava, até admirava, mãos enluvadas pelo poder, pela Igreja, pela impunidade, a sacralidade devassada, a fé no Senhor maculada? Como lida com a culpa uma criança abusada? A traição é uma faca espetada no coração, uma ferida que não sara, se essa punhalada é desferida por quem nutrimos veneração.
Quando Schäfer, na mudez e na ablepsia cúmplices da noite, saía da toca de predador e vinha aos dormitórios dos rapazes escolher a presa, quando se acercava das camas onde eu e o meu irmão fingíamos dormir, eu levantava-me, antecipava-me, dava-lhe a mão para que não levasse o meu irmão, o irmão que prometi a Deus proteger e que Ele não protegia, um Deus que de nós se distraía. Afinal, ao menino e ao borracho Deus não põe a mão por baixo, nem ninguém da colónia o fazia. Todos sabiam. Todos calavam. Sacrificava-me pelo meu irmão mais novo, órfão e indefeso, franzino e apavorado à espera que o papão viesse devorá-lo. Enquanto Schäfer me violava na sua toca de martírios, ouvia os gritos dos presos políticos de Pinochet a serem torturados pelos agentes da DIVA nas caves subterrâneas da colónia, uma conivência entre Schäfer e o ditador chileno que garantia a protecção e a intocabilidade do pederasta nazi. Quando a luz do dia aparecia, esgueirava-me do corpo engelhado e nojento de Schäfer, corria para a camarata onde o meu irmão dormia. Sentava-me na borda da sua cama, devagar para não o despertar, ameigava-lhe o rosto e chorava, como se aquele pranto lavasse o meu corpo dorido e imundo e de mim expulsasse o fedor do meu violador. Dois amigos meus tiveram coragem e fugiram da colónia, denunciaram as monstruosidades da Dignidade. Foram ouvidos. Schäfer morreu na prisão. Demorei mais de vinte anos a contar a minha história. O pânico, a vergonha e a depressão tomaram-me refém.
Hoje falo, junto-me à voz de milhões de vítimas de pedofilia. Uno-me às comissões alemãs, francesas, chinelas e espanholas que investigam e põe a nu a verdade escondida na podridão das instituições religiosas, mostram a hipocrisia da Igreja que protege os agressores e desvaloriza as vítimas, expõe os crimes praticados em múltiplos locais pelos pederastas ao longo de décadas, crimes cujas penas têm de se agravar, cuja prescrição tem de acabar. Os papões estão em todo o lado, por vezes, onde menos se espera. Nenhum pedófilo pode sair impune nem sancionado com uma pena leve.
Protejam-se as crianças e faça-se justiça, “Assim na Terra como no Céu”. Ámen.

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