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César e Aristides de Sousa Mendes

A responsabilidade de todos

César e Aristides de Sousa Mendes

Voz aos Escritores

2021-05-28 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Filhos do discreto juiz José de Sousa Mendes e da aristocrata liberal Maria Angelina do Amaral e Abranches os gémeos César e Aristides prolongariam na vida a ligação uterina que os unia. Além das semelhanças físicas gostavam dos mesmos doces, devotavam os mesmos santos, adivinhavam o que o outro ia dizer ou fazer num sincronismo transcendente que deixava boquiabertos e enredados em benzeduras os fervorosos católicos de Cabanas de Viriato, berço do seu nascimento. Na senda do Pai, ambos tiraram o curso de Direito em Coimbra e ambos optaram pela carreira diplomática. Tinham vinte e cinco anos de idade quando essa carreira os apartou, um apartar somente físico, porquanto léguas e léguas de terra e milhas e milhas de mar não lograram separá-los: César e Aristides pressentiam os sentimentos um do outro numa sintonia intrínseca inexplicada pelas leis da ciência. Em Maio de 1910 César foi destacado para missões em Inglaterra e Espanha e Aristides iniciou o seu percurso em Demerara, Guiana Britânica, na América do Sul, acompanhado pela esposa Maria Angelina Ribeiro, a Gigi, fiel seguidora da sua internacional carreira assim como os catorze filhos que ao Mundo deitaram.

Aristides era um homem justo, íntegro, exímio pater familiae, defensor acérrimo da honra e dos bons costumes, um patriota que levou além-fronteiras a notoriedade de Portugal, do Império Colonial e a sua glorificada História. As fraquezas da carne fizeram-no prevaricar aos cinquenta e cinco anos, em Janeiro de 1940, enrabichado pela francesa Andrée Cibial de trinta anos que cobiçou o cônsul de Bordéus em detrimento do filho deste, quiçá a francesa se tenha embeiçado pelo charme maduro de Aristides que suplantava o viço da idade do seu descendente macho, as paixonetas não se explicam, sentem-se, no bom pano cai a nódoa e os escândalos abafam-se. César resolveu-lhe o imbróglio quando em Outubro desse ano a francesa deu à luz na Maternidade Alfredo da Costa uma menina de nome Marie-Rose, atribuindo a paternidade do botãozinho de rosa ao ilustre cônsul de Bordéus.

César mexeu os cordelinhos diplomáticos na PVDE e a Gigi nunca soube do tropeço conjugal, ou fingiu não saber, por vezes é mais conveniente não pôr tudo em pratos limpos e disfarçar a nódoa na toalha de linho, deixar o barco navegar por águas de aparente acalmia, e quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Aristides aguardava a reprimenda de Salazar quando os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial se sobrepuseram às ânsias de alcova. Milhares fugiam das garras nazis, escorraçados, perseguidos nos territórios da Europa ocupados, judeus, apátridas, dissidentes políticos, milhares que procuravam a salvação ameaçados pela prisão, pelos horrores da tortura, dos campos de concentração, milhares que fugiam da morte, da desumanização, milhares que careciam de um visto que lhes permitisse a passagem por Espanha e a entrada em Portugal, país limite do velho continente doente, o abismo da falésia lambida pelo mar, o mar que os apartava da América aonde queriam chegar, mar poderoso, mar estrondoso como os caminhos ínvios desses milhares, mar feiticeiro a igualar os amores proibidos e a prepotência de Salazar.

Quando nesse ano as tropas do Terceiro Reich invadiram a França, Aristides de Sousa Mendes viu-se confrontado com o maior dilema da sua exemplar carreira diplomática. Em nome da neutralidade de Portugal no conflito bélico, Salazar impôs o cumprimento da “Circular 14”, proibindo os diplomatas portugueses de concederem vistos aos estrangeiros que apresentassem nos seus passaportes uma declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provinham e aos judeus expulsos dos territórios ocupados. Aristides olhava aquele mar de gente, gente desesperada, gente saqueada de tudo privada, os escassos pertences em malas de mão, quem pouco ou nada tem traz o fardo do Mundo nos ombros caídos, nos olhares esvaídos, gente cujas vidas dependiam de um simples papel, um visto de salvação. Aristides sacudiu a hesitação, não pactuaria na chacina, desobedeceria a Salazar, a moral e o valor da vida humana sobrepunham-se a qualquer ordem.

Durante dois dias, sem dormir e quase sem comer, assinou milhares de vistos. Aristides de Sousa Mendes agiu consciente da sua desobediência, conhecedor dos riscos que corria, das punições a que se submeteria, punições terríveis que não tardaram, condenado à inactividade por um ano com metade do vencimento da categoria, seguida da aposentação compulsiva sem qualquer remuneração e proibição do exercício da advocacia. Por injusta extensão, César esteve cinco anos inactivo. Sem meios de subsistência, Aristides e Gigi alimentavam-se na cantina da Comunidade Judaica de Lisboa e alguns dos seus filhos foram obrigados a emigrar para os E.U.A. e para o Canadá. A 30 de Agosto de 1948, no dia em que cumpria 60 anos, Gigi deixou este Mundo. Aristides casou-se com a francesa Andrée Cibial, a Penucha, como a alcunharam em Cabanas pelas suas bizarrias e pelos chapéus emplumados em meios bucólicos inapropriados. Aristides morreu a 3 de Abril de 1954. Num descarado cinismo, Salazar enviou um cartão de condolências à família, que o guardou sem alardes, na dignidade dos injustiçados. César seguiu o irmão escassos meses após o falecimento de Aristides. Juntos na vida, juntos na morte. Aristides de Sousa Mendes salvou milhares vidas. Em 1966 a autoridade judaica para a Memória do Holocausto nomeou-o “Justo entre as Nações”. “Quem salva uma vida, salva a Humanidade.”

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