Correio do Minho

Braga, sábado

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Cozido à barrosã

As férias e o seu benefício

Cozido à barrosã

Escreve quem sabe

2021-12-10 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Agula não tem freio. Despe-se e deixa-se tocar. Ganha terreno. Levita. Pousa em nuvem. É poema sem palavras. Saliva. A boca abre-se. Nada de pressa para os que têm calo. À bruta, para quem nunca viu.
O fumo é pele. Entranha-se. De sapato alto ou sapatilha de marca, ninguém resiste à capela sistina do Barroso. Os olhos colam-se nos lareiros e oram. Fumados, os enchidos são névoa breve. Suspensos e sem pagar promessa, estão chouriças, sangueiras, salpicões, farinheiras, alheiras e mais que haja. Uma vista de pecado original. Irresistível. Sedutora. Pedaços de mau caminho.

É neste harém que nasce o inigualável cozido à barrosã que, por estes dias, tenta o magro e o gordo no concelho de Montalegre, município que decidiu, em boa hora, reforçar a promoção deste emblema gastronómico.
Quem ousar combater este património do Barroso sabe que vai perder. Não vale a pena colocar fichas. Sai sempre no cavalo errado. A resistência cede pelo nariz. O olhar tomba depois. É assim e louvado seja.
As mãos da mulher barrosã são arte. É com elas que o porco é tratado e potenciado depois de morto. Animal do qual tudo se come. Da ponta do focinho à ponta do rabo é um banquete. Não se deita nada fora. Assim era, assim é. Quem não o faz, não sabe comer. Não aproveita os mil e um sabores do rei da mesa. Estendido ou em fatias, o porco é sustento e orgulho. É canseira e vaidade. É sobrevivência e festa. É para o amigo e para o que convém. Um multifunções que enche a banca. Disfarça a falta. Atenua a míngua. Potencia a soberba.

Há muitos que se fazem à estrada. Uns, pela onda. Outros, pela certeza do que vão encontrar. Antes, juntam os cobres que deixam nos bolsos de quem ainda resiste e preserva o amanho da terra, a sacha, a carrada, o corte do estrume, o arranque do esterco, o espalhar da palha, por entre couves, nabos, milho, centeio, farelo, grão, batatas, beterrabas e tanto que o barrosão carrega às costas, orienta pelo jugo das vacas com a vara de aguilhão ou pelo roncar do trator.

À mesa pede-se descontrolo e vista desarmada. Antes da dança das cadeiras, já o perfume do fumeiro coloca a seiva em ponto de rebuçado. Aromas tricotados com chouriço de abóbora, salpicão, paio, chouriça, farinhota, sangueira, farinheira de mel, alheira e presunto. Pelo meio, a estalar, o pão de centeio. A boca é locomotiva. Descarrila de prazer. Um júbilo nu, sem resistência, a pedir mais. Pouco depois, assoma o fumegar da travessa. Toda ela é líbido. Quem está sentado excita-se. De pé, sente-se o avolumar do sorriso por ver a goela em desnorte. Há pecados por toda a parte: orelheira, pé de porco, peituga, ranhão, pernil, barriga e rabo. Pode encontrar-se a vitela barrosã exposta no nispo, ilhada e língua. Há porco bísaro fresco – entrecosto, toucinho e entremeada – batata kennebec e couve tronchuda. O manjar é regado pelos vinhos Mont'Alegre e Padre Fontes. Há ainda espaço para castanhas e o fragrante licor do padre para aliviar.

Esta terra tem charme. Nela habita um povo que vence pela qualidade. Não são muitos, são bons. Gente de nervo, com coluna vertebral. Uma franja deste país que insiste onde muitos desistem. Persiste onde tantos abandonam. Por aqui, no verde dos lameiros e no pó da leira, ainda palpita o Mundo que está a acabar. Traços que arrebitam a memória de quem foi criado por entre a croça de junco e a capa de burel. Que calçou a galocha e o soco aberto, afagado pelos carpins de lã. Que bebeu pela borracha. Que tocou o sino quando havia lume e o gadinho serra dentro.

Há em mim esta saudade desalmada. Laços que me enlaçam. Por entre este tempo sem tempo, não raras vezes viajo pelo cheiro do Outono até atracar nesta badola de lembranças. Caíam os dias, erguiam-se partilhas. Pelos serões, a escanar milho. Novos e velhos. Moreias de lenha despejadas atrás do escano. Paredes pintadas pelo negro do fumo. O fiar da roca pelas mulheres. A aguardente dos homens com barba por fazer. Junto à lareira, potes com batatas e couves. Um fio de azeite. Cães e gatos à cata dum cibo de pão. Com a candeia acesa ou com o casco cardido por onde saía uma fina linha de luz, eis a raiz do melhor que vi e senti. Aqui, a mesa estava sempre posta. Bota aí!

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