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Braga, quinta-feira

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Conto a partir de uma notícia de jornal

Os bobos

Conta o Leitor

2019-08-09 às 06h00

Escritor Escritor

António Valente

Alves Faria, cearense da cidade de Groaíras — alguém por acaso sabe onde fica Groaíras, qual o seu tamanho, o que produz, se é que produz alguma coisa, quantos são e o que fazem seus habitantes no dia-a-dia da vida? José Alves Faria viveu até os 22 anos, mas ninguém se lembra dele. Ninguém, não. Talvez os oito irmãos, o seu pai e a sua mãe, se estiverem vivos. Alguém sabe por onde andam os seus irmãos, se ainda moram em Groaíras? Principalmente Vandir, será que voltou para sua terra ou ficou por aqui após aquela noite — sua primeira noite e, assim mesmo, trágica noite no Rio de Janeiro? Ninguém sabe, mas Vandir, este, certamente, jamais terá esquecido o irmão, não por ele propriamente dito, nem pelas memórias da vida em comum no interior do Ceará, mas pelo horror daquela noite, a terrível noite em que viu José pela última vez.
Não, ninguém sabe quem foi José Alves Faria, exceto seus familiares e os vizinhos que com ele conviveram, desde o nascimento, durante a infância e até o raiar da juventude, quando decidiu partir.

Aqui no Rio, pode até ser que alguém se lembre vagamente. O português, dono do restaurante da Rua Francisco Serrador, na Cinelândia, dificilmente lembrará. Como se lembrar de um, no meio de tantos nordestinos que passam pelo seu estabelecimento — e já lá se vão mais de vinte anos! Exceto se ele ficou sabendo, o que é pouco provável. Mas se ficou, alguma pontinha de culpa, mesmo que inconsciente, pode ter preservado em algum recôndito canto da sua alma — mesmo nessa alma de patrão, avara de afetos e inexperiente de sentimentos, alma endurecida pelos relacionamentos mercantis, os únicos permitidos no mundo dos negócios —, mesmo nessa alma empobrecida e pouco sensível pode ter ficado, ainda que reprimida, à custa de um débil remorso, uma vaga lembrança de José Alves Faria — se é que ele ficou sabendo.

Algum colega de trabalho talvez também se lembre. Apesar da superficialidade dos contatos durante a azáfama no restaurante, vigiados, ainda por cima, pelo olhar severo e implacável do patrão, ainda assim, alguma lembrança pode ter ficado, pois foram três anos naquele emprego. Não de José Alves Faria, assim com nome e sobrenome — no corre-corre do atendimento aos fregueses, ninguém sabe, nem se importa em saber, os nomes uns dos outros. Ali, naquele ambiente odioso, de muito trabalho e pouco ganho, em meio à fumaça e à algaravia dos pedidos incessantes e sempre urgentes, não sobra tempo nem disposição para cultivar amizades. Daí as alcunhas, que repelem qualquer intimidade. Se algum deles lembrar, será, provavelmente, do Paraíba, ou outra alcunha qualquer — aquele que, depois de demitido, sumiu para sempre, quem sabe até não voltou para o nordeste.

Menos recordações ainda devem ter os companheiros de sono no barracão da Rua Pedro Américo. Eram seis, no quarto em que José morava e mais dez no quarto ao lado. Não sei se é correto chamar de moradia o quarto de dormir daqueles trabalhadores, que provavelmente tiveram, em terras longínquas, mesmo que pobre e miserável, uma verdadeira morada, mas que, ali, possuíam apenas um canto e uma cama, espremida no meio de várias outras, numa convivência promíscua e não voluntariamente escolhida, aonde chegavam tarde da noite e de onde saíam ainda de madrugada, após terem restabelecido, sempre insuficientemente, em noites insuportavelmente quentes ou irremediavelmente frias, suas exauridas forças, sugadas diariamente em penosas jornadas de trabalho.

Mas, quem sabe, mesmo naquela mera contigüidade escassa de relacionamento verdadeiramente humano, talvez houvesse algum a quem José era mais afeito. Algum companheiro de futebol em dias de folga no Aterro do Flamengo ou de esperançoso flanar noturno no Largo do Machado à cata de namoros. Ou talvez não, tudo se resumindo mesmo em áspera solidão coletiva. De qualquer modo, seja lá onde estiverem, agora, depois de tantos anos, pode ser que alguns deles, puxando pela memória, se lembrem de José, se não por conta de algum gesto afetivo, mesmo que fugaz ou fortuito, que possa ter registrado sua lembrança no coração, talvez se lembrem, se não por isso, pelo menos por conta dos transtornos e aborrecimentos sofridos naquela noite indormida, no tumulto da presença dos policiais e da ambulância.

Ninguém se lembra de José Alves Faria. Ninguém sabe quem ele foi e ninguém se interessa em saber. Claro. José foi um perfeito joão-ninguém, no caso um josé-ninguém. E, no entanto, José Alves Faria, aos 22 anos de vida, fez algo realmente extraordinário. Algo humanamente extraordinário e significativo.

“Há pouco mais de um mês, o patrão dera-lhe férias. Trinta dias depois, quando voltou para trabalhar, foi avisado de que estava demitido. O rapaz foi cinco vezes ao restaurante, tentando receber o dinheiro devido por seus três anos de trabalho na casa — a última na quarta-feira — em vão. Na quinta-feira, estava esperançoso de conseguir novo emprego, no bar defronte ao nº 82 da Rua Pedro Américo, mas o garçom que andava faltando ao serviço, a quem ele deveria substituir, apareceu para trabalhar. Passara uma semana procurando emprego e, ontem à noite — dia 16 de julho de 1981 —, desesperado, matou-se. Foi encontrado, de madrugada, enforcado com uma corda amarrada ao caibro do quarto onde morava.
A preocupação de Vandir — que chegara de Groaíras naquela mesma noite, também em busca de trabalho como copeiro ou garçom —, sozinho, de pé na calçada, era avisar o pai, a mãe e os irmãos que estavam no Ceará.”

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