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Como me custa escrever sobre esse passado tão presente

A responsabilidade de todos

Como me custa escrever sobre esse passado tão presente

Voz aos Escritores

2021-02-05 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Sou sobrevivente do Holocausto, do Shoá, tenho 91 anos, vivo em Israel. Um outro vírus, como outrora o vírus nazi, mata-nos, um vírus que ao contrário do assassino nazi não escolhe credos, raças, ideologias políticas, sexualidades, sequer faixas etárias, embora prefira as vítimas de idade avançada, a bela idade, como alguns românticos e poetas lhe chamam. Em nome da patranha da raça suprema, os arianos nazis esterilizaram milhares de pessoas rotuladas de inferiores, pessoas que conspurcariam a supremacia rácica, os nazis enclausuraram e assassinaram, seguindo o programa T4 da eutanásia, milhares de seres portadores de deficiências, carimbados de inúteis, dispensáveis fardos sociais, os nazis mataram milhões de judeus, ciganos, homossexuais, dissidentes políticos e prisioneiros de guerra. Além de mim que escapei ao genocídio, em Israel vivem 179.600 sobreviventes do Holocausto, todos com mais de setenta e cinco anos. O novo vírus que não o vírus nazi, vitimou 5.300 de nós, o Corona vírus não se compadeceu do nosso passado sofrido, um passado que arrastamos como uma ferida que não sara. Todo o ser humano bom merece uma Boa Morte, um soltar sereno do leito caseiro rodeado pelos que o amam, um esvoaçar da alma sem dor, a alma livre de culpas que aos poucos se desprende do corpo dormente, uma morte santa, uma morte abençoada. Não sou superior a ninguém e todos temos de partir deste Mundo, mas nós, os sobreviventes do Holocausto, devíamos ter uma Boa Morte, compensadora do terror que vivemos.
Como me custa escrever sobre esse passado tão presente, não pelas artroses dos dedos retorcidos como vinhas ressequidas, mas pela dor da memória que é a pior das dores, uma dor crónica, perseverante, imune ao mais eficaz dos analgésicos. Foram estes dedos agora retorcidos que me salvaram a vida.

No meu sexto aniversário os meus Pais ofertaram-me um violino. Fiquei deslumbrada, adoro música. Os meus Pais incentivaram-me desde pequenina a aprender e a saborear a música dos grandes compositores que em família escutávamos, sons mágicos ecoados pela grafonola da nossa casa em Cracóvia. Como éramos felizes, meu Deus. Como éramos felizes até a Polónia ser invadida pelos Alemães. Como éramos felizes antes de nos espoliarem dos bens, dos empregos, das instituições, das aulas, das casas. Se hoje alguns se queixam do confinamento obrigatório como prevenção da propagação do Corona vírus, tentem visualizar o enclausuramento de quinze mil judeus num gueto com capacidade para albergar três mil pessoas, um bairro murado, uma fortaleza de arame farpado onde os víveres escasseavam, a água escasseava, os medicamentos escasseavam, tudo rareava. Gueto de casas e prédios decrépitos, apartamentos minúsculos atulhados de três ou quatro famílias, ruas assombradas, ruas calcetadas de miséria, estendais de gente esfarrapada, gente de mão estendida que tudo vendera para matar a fome, gente que nos passeios se estendia, se encolhia, olhos em caras escalavras que para além dos arames procuravam fiapos de vida, ruas de cadáveres calcetadas, ruas de crianças órfãs e famintas povoadas, ruas de homens espancados, homens de barbas à força cortadas, mulheres entrapadas, mulheres violadas. Como éramos felizes antes de nos tirarem a família, a honra, a humanidade. Como éramos felizes antes de sermos nada.

Como me custa escrever sobre esse passado tão presente. Os camiões chegavam, as pessoas à coronhada se agrupavam, Mães a agarrarem os filhos, homens impotentes face à ameaça das armas, soldados que vociferavam, a mão da minha Mãe a estrangular a minha, a mão do meu Pai a esganar a da minha Mãe, e nessa amarra de carne viva seguimos no camião, o medo sufocava, o ar rareava, o fedor asfixiava, o silêncio gritava, homens, mulheres, crianças, gado enclausurado, gado condenado, rebanho enfileirado no chão enlameado de Auschwitz-Birkenau, os soldados a separarem os homens das mulheres, as mulheres das crianças, mulheres que chamavam pelos homens, mulheres que chamavam pelos filhos, eu abraçava o violino, tinha doze anos, a música que na minha mente tocava emudecia os brados da minha Mãe e o soluçar do meu Pai. Nunca mais os vi, evaporaram-se nos duches, eufemismo dos nazis, os duches câmaras de gás onde pereceram milhões de seres humanos. Até à libertação do campo a 27 de Janeiro de 1945, salvei a vida a tocar violino na orquestra que acompanhava a marcha diária dos aprisionados para o trabalho escravo, marcha que se iniciava após a infernal chamada dos números tatuados nos braços, horas infindas de contagem no pátio sob o gelo da Polónia, sob a fome, sob os trapos, sob os pés chagados em socas entalados, quanta ironia, meu Deus, a tortura diabólica ao som divinal de Beethoven.

Como me custa escrever sobre esse passado tão presente, mas faço-o, enquanto estou viva, sigo o apelo da O.N.U para a mobilização de iniciativas no combate ao negacionismo e ao antissemitismo.
Como me custa escrever sobre esse passado tão presente, mas faço-o, para que não se repita, faço-o para alertar o Mundo, porque os ventos da instabilidade, da ignorância, do ódio e do medo que sopram nos céus da Terra, podem trazer um vírus de uma estirpe análoga à do vírus nazi, um outro vírus que voltará a flagelar a Humanidade.

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