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Cofre do Apocalipse

As férias e o seu benefício

Cofre do Apocalipse

Escreve quem sabe

2022-03-04 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

O homem é a grande ameaça à sobrevivência humana. O único que mata por prazer. Nos últimos anos, a evidência desmascarou a podridão do caminhar. Há não muito tempo, a ONU veio dizer que pelo menos um milhão de espécies corre o risco de desaparecer para sempre nas próximas décadas. A postura insaciável do homem tem degradado os ecossistemas da Terra a ponto de colocar em risco as fundações ecológicas da sociedade. Áreas como a poluição do ar e dos oceanos, perda de biodiversidade, desmatamento e uso do solo, oferta de água potável, mudanças climáticas e uso dos recursos naturais estão na linha vermelha.
A febre do planeta já provocou consequências irreversíveis. Basta pensar que no ponto mais alto do Mundo – o Monte Evereste – o gelo que demorou dois mil anos a formar-se derreteu em apenas 25 anos, isto é, está a dissolver-se a um ritmo 80 vezes superior do que demorou a formar-se. O descontrolo na produção de plásticos e químicos elevou para cinco os limites planetários já ultrapassados. Os restantes quatro dos nove diagnosticados – alterações climáticas, excesso de azoto e fósforo, alterações do uso do solo e perda de biodiversidade – há muito que boiam na falência. Este quinto marco vermelho foi anunciado recentemente num artigo científico – “Outside the Safe Operating Space of the Planetary Boundary for Novel Entities” – publicado na revista Environmental Science & Technology.
A chacina está por todo o lado. Somos um animal predador que tem consciência do mal que faz e que continua sem parar. Ninguém puxa o travão com autoridade. Mutilamo-nos com ou sem dor. Tudo gira em torno do ego. O ar que respiramos só existe porque há árvores. Sem elas, tombamos. Devia bastar para colocar freio. De todo. O relatório “Estado das Árvores do Mundo” descobriu que 30% das 60 mil espécies de árvores conhecidas estão em risco de extinção. Mais de 140 espécies já desapareceram. As restantes caminham para a extinção. Nos últimos 300 anos, a área florestal global diminuiu cerca de 40% e perto de 30 países perderam mais de 90% da área verde.
Este retrato rasgado veio-me à memória a pretexto de um parágrafo que li ao calhas, por estes dias, num recorte de jornal onde meia dúzia de linhas descrevem a outra face do homem.
Nos confins de uma montanha gelada, a nordeste da costa da Noruega, em pleno Oceano Ártico, está erguido um edifício que alberga a maior coleção de biodiversidade agrícola. No interior, estão garantidos 13 mil anos de história do setor primário. Batizado como Svalbard Global Seed Vault, está convertido num gigante back-up de todas as sementes de todas as plantas do Mundo. Em boca corrente chamam-lhe Cofre do Apocalipse.
Construído em 2008 numa mina de carvão abandonada, nasceu para salvar a humanidade no caso de um evento apocalíptico ou uma catástrofe global. Até ao momento, estão alojadas um milhão de variedades de sementes a 120 metros de profundidade, abaixo do nível do mar, com uma temperatura a rondar os 18 graus negativos. Este bunker acaba de receber novas sementes – milho painço, sorgo e trigo – levadas pelos bancos de genes do Sudão, Uganda, Nova Zelândia, Alemanha e Líbano que se juntam à coleção de mais de 1,1 milhão de amostras de sementes que representam cerca de 6.000 espécies de plantas de todo o Mundo.
Malgrado, até neste contexto a ação do homem ameaça eclodir este aparente abrigo inexpugnável. O mais recente relatório do governo norueguês menciona que as Ilhas Svalbard estão a enfrentar mudanças significativas devido ao aquecimento global. Tudo aponta para que as temperaturas do ar nas ilhas aumentem de tal ordem que provoquem o descongelamento do gelo, que transformará o solo sólido, em torno da instalação, em água.
Face ao que escrevi e ao contexto que atravessamos, como inverter o dilúvio da humanidade quando temos no comando do navio mãos que escaldam a Arca de Noé? Rogar aos deuses parece já só estar ao alcance da demência, tamanha a afronta que deixamos calcada na terra.
O velho continente volta a ser assombrado pela cortina de ferro. Cheira a alcatrão queimado. O céu é um grisalho permanente. Colunas de fumo estalam o sobressalto. Uns bailam outros enganam o tempo por baixo de terra. Há neste absurdo a arte para não morrer da verdade como escreveu Nietzsche.
No entretanto, abrigados pela espuma dos dias, havemos de ter uma razão para continuar a marchar mascarando, aqui e acolá, a atração pelo juízo final.

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