Correio do Minho

Braga, quarta-feira

- +

Cem Anos de Solidão

Segurança na União Europeia: desafio e prioridades

Cem Anos de Solidão

Voz aos Escritores

2024-12-20 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Conta-se que Gabriel García Márquez se isolou do mundo e durante seis meses escreveu o Cem Anos de Solidão encerrado num quarto da sua casa. Mercedes, sua mulher, assumiu as trivialidades do quotidiano: vendeu o carro, pediu fiado ao merceeiro do bairro, cuidou dos dois filhos do casal e da vida doméstica. Depois de meio ano de sofrimento e remedeios, porque escrever também é padecer, Gabo, como amigavelmente o Escritor era chamado por fa- miliares e amigos, disse a Mercedes que finalizara o livro. O casal dirigiu-se ao posto dos correios para enviar o manuscrito à editora. A funcionária dos serviços postais informou-os do custo do envio e quando o casal constatou que não tinha dinheiro suficiente a funcionária sugeriu-lhes que mandassem somente metade das páginas. Mercedes respondeu-lhe que nem pensar. Venderia a máquina do café e o secador de cabelo e voltaria com a quantia suficiente. Quando por fim enviaram o manuscrito, Mercedes disse a Gabo: oxalá o que escreveste valha tanto sacrifício. Cem Anos de Solidão é uma obra-prima da Literatura e contribuiu para que García Márquez fosse merecidamente galardoado com o Nobel em mil novecentos e oitenta e dois. É um livro completo que tem todos os requisitos de uma obra genial. Em Macondo, vila imaginada pelo escritor colombiano, fundada por um grupo de homens e mulheres guiados por José Arcadio Buendía e Úrsula, sua mulher, assistimos ao desfilar das personagens ficcionadas que espelham a essência da condição humana aliada a um realismo mágico que nos remete ao misticismo e à fantasia da infância prolongados na madurês. Que monótona e parda seria a vida sem esse Mundo fantástico que habita o nosso imaginário sem idade. Gabo tem o dom de nos transportar para mundos distantes e extraordinários, mundos sem tempo cronológico e sem delimitações geográficas, numa escrita exímia onde a beleza das frases e a sabedoria das palavras compõe as páginas que não queremos que terminem. Páginas onde mergulhamos nas alucinações obstinadas de José Arcadio Buendía fomentadas pelo amigo cigano Melquíades que lhe deu a conhecer o gelo, a alquimia e outros prodígios, em que testemunhamos o amor e o pragmatismo de Úrsula cuja presença de estende ao longo da obra, talvez a mais lúcida das personagens que carrega a vida dos familiares excêntricos e nesse comando está a sua solidão, porque todas as personagens são solitárias apesar dos amores legítimos e clandestinos, longevos ou esporádicos.
Úrsula talvez inspirada em Mercedes, que na praticidade quotidiana põe comida na mesa em gestos de amor e vende caramelos para sustentar uma família de alucinados, os caramelos que distribuídos pela gente de Macondo a contagiam com a epidemia da insónia que deixa os habitantes sem dormir até perderem as memórias. E amores tórridos e pecaminosos outrossim proliferam, como a luxúria de Rebeca e de José Arcadio Buendía filho, Rebeca que em criança foi depositada na casa dos Buendía acompanhada por um saco com as ossadas dos seus pais e cresceu com Amaranta, filha de Úrsula e José Arcadio Buendía, um fraternal elo vincado pelo ciúme e pela inveja e o disputar de um noivo que conduz a desfechos fatídicos e à abismal solidão de Amaranta. Solidão que se estende a Aureliano Buendía na sua viuvez precoce, um apaixonado pela púbere Remédios, um amor enorme mas curto que empurra o segundo filho de Úrsula para a guerra, talvez para mitigar a dor da solidão. Na estúpida e inútil carnificina das guerras, Garcia Márquez mostra-nos a perene luta pelo poder, o ódio que alimenta o ódio, o desvario da humanidade que não sabe viver sem pelejar e na própria solidão encontra a morte mesmo que cada um morra acompanhado em terras de sangue. Os nascimentos de legítimos e bastardos, assim conotados por Úrsula, renovam as gerações dos Buendía numa saga familiar enraizada em Macondo, cujo principal fundador, José Arcadio Buendía, sobrevive sem tino atado a um castanheiro, falando em aramaico relembrado dos textos do seu sábio amigo Melquíades, cujo fantasma paira numa casa amaldiçoada pela solidão. E tanto mais há a contar sobre este magnífico livro que não cabe nesta crónica.
A Netflix teve a coragem de levá-lo ao ecrã. A série é muito boa. Excelentes cenários, excelentes interpretações, mas na verdade seria impossível igualar a sublimidade do livro que é um dos marcos imperdíveis da Literatura Universal e Intemporal. A Humanidade deve eterna gra- tidão a Mercedes e a Gabriel García Márquez.?

Deixa o teu comentário

Últimas Voz aos Escritores

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho