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Carne

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Carne

Escreve quem sabe

2021-11-12 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

A estrada não tinha nome de ouvido. Íamos quatro no carro a invadir Espanha quando um deles soltou, em graça, a nova forma de produção de carne. Por breves instantes, o silêncio foi temperado por palavras em busca da melhor reflexão. Todos já tínhamos escutado, uns mais do que outros, sobre esta nova perspetiva de encarar a sobrevivência.
É em jaula que a empresa de biotecnologia Future Meat anunciou, há escassas semanas, a inauguração da primeira instalação de produção de carne cultivada. Erguido em Israel, na cidade de Rehovot, este inefável investimento é capaz de gerar diariamente 500 quilos de alimentos. Quem está à frente, garante que a carne artificial gera 80% menos emissões de gases de efeito estufa, usa 99% menos terra para pastagens e, pasme-se, consome 96% menos água do que a produção tradicional de carne. Nesta panela de espanto não entram aditivos químicos.

Este viver onde tudo parece caber, onde os números estão na linha da frente da última decisão, não irá estranhar o avanço deste caminho lunar. Uma carne sem alma feita em laboratório por meio de técnicas de bioengenharia, isto é, sem abate. O homem passa, deste modo, a fazer nascer alimento a partir de células animais. Inicia a sequência com a retirada indolor de uma amostra de tecido muscular de um animal vivo que passa a ser transformada em massas de células. Neste labirinto já passaram amostras de vacas, galinhas, coelhos, patos, camarões e atuns. Um projeto de exército palmilhado em vidro na sã tentativa de recriar partes dos corpos sem ter de criar, confinar ou abater os próprios animais.
O “milagre” em terra de Cristo vai beber à fonte de Mark Post, pioneiro na investigação sobre carne cultivada em laboratório. O anúncio ocorreu em 2013 ao expor um hambúrguer produzido a partir de células de músculo de vaca criadas no seu ninho experimental.

Por muito que haja vozes discordantes que queiram contrapor com todo o tipo de argumentos, a verdade é que o relógio não para. Não é necessário destapá-lo para ver o ponteiro a sangrar. Virou tema obrigatório na agenda mundial como se viu na Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP26) que hoje chega ao fim em Glasgow. Criar e matar animais tornou-se um embaraço ambiental e ético. Com a pressão da opinião pública a estalar por todo o lado, várias startups estão a desenvolver carne in vitro e a associar-se a multinacionais do agro-negócio. O desafio é claro: passar da produção experimental de carne em laboratório para a grande escala e, com isso, gerar riqueza.
Eu que estendo o olhar, na maioria dos dias, por uma terra perfumada pelo aroma da natureza, abraçada pelos lameiros de pasto e cintilada pelo castanho da raça barrosã, cria-me repúdio saber que o homem abandona o habitat natural, tranca a porta e acredita que vence a picada da mosca, o bruar do vitelo, o odor da bosta, a carrada do feno, a sacha do milho, a badola do carro das batatas e, no topo da embriaguez, a vaidade da torna que irá dar a melhor erva do março.

É assim este tempo que tende a acabar. Com verrugas. Prenho de memória. Um lastro de história que levou, no século XIX, muitas embarcações a zarparem rumo à pátria de Camões onde atracavam para carregar milhares de animais para serem servidos, em requinte, à mesa da Corte Inglesa. Envoltos em glamour, os londrinos não enganavam o estômago com a fragrância do alto da montanha. Ainda hoje quem visita a terra de Shakespeare e dos Beatles e for a um restaurante facilmente pode encontrar um portuguese beef. A origem está na deliciosa carne barrosã, cujo solar reside na vila de Salto, concelho de Montalegre.
Esta ode triunfal esbarra com a obrigatoriedade de repensar um planeta cada vez mais abafado. A redução da biodiversidade e a perda dos serviços dos ecossistemas são setas à mira do homem. Se hoje somos 7,7 biliões, em 2050 apontamos para os dois dígitos no entender da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Dito de outra forma, a percentagem de comida terá que subir 70%, número insuportável que faz perigar a humanidade. A mais que certa inabitabilidade só pode ser travada pela ação do homem. Caso não acorde tem a guilhotina pela frente.

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