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Café com Ave Maria

A responsabilidade de todos

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Conta o Leitor

2021-07-21 às 06h00

Escritor Escritor

Fernando Gutman

A novela acabou. Cadê Carlos Frederico? Sempre chega cedo. Mas agora tem dezoito anos, tenho que me acostumar. Todas as mães ficam nervosas, é normal. É melhor ver um filme. Mas é sobre seqüestro de crianças. Mudo de canal. Notícias sobre guerras. Fico aflita. Por que Carlos Frederico não liga? Se alguma coisa acontecer a ele, o Fred não vai me perdoar. Desde que nos separamos, acha que sou a culpada de tudo, desde um simples resfriado até as notas baixas. Um pneu furado pode causar uma grande capotagem; um copo de cerveja diminui em trinta por cento os reflexos; um pouco de óleo na pista pode causar derrapagem; uma pequena discussão no trânsito pode chegar a uma grande tragédia.
Minha cabeça está a latejar; como parar de pensar nisso tudo?
Nem preciso de um café para ficar acordada. Café pode viciar, me lembrar do cigarro. E não estou com sono mesmo. Carlos Frederico foi uma criança travessa. Todas as férias tinha que levá-lo ao ortopedista: foram onze fraturas. Meia-noite, o relógio que recebi no Dia das Mães me lembra a cada quinze minutos de que o amanhecer vai demorar. Tomo café ou não?
O coração está acelerado, um café vai fazê-lo disparar. Toca o telefone. É a mãe da Pamela, namorada do Carlos Frederico. Está nervosa. Saíram para ir ao cinema às seis da tarde e ainda não voltaram. É de praxe voltarem para jantar. Culpa-me pelo desaparecimento da filha. Vou procurar em hospitais?
Só essa ideia me arrepia. Já estive em emergências, macas no corredor, acidentados a gritar por ajuda. Os celulares não atendem. Já deixei recados. Uma da manhã. Vou para o computador e leio as notícias em tempo real. Quem sabe aparece alguma coisa?
A vontade de tomar um café e fumar aumenta. Mas não quero retornar ao vício. Nada de café. Duas horas. Odeio as badaladas desse relógio. Ligo ou não para o Fred?
A mãe da Pamela me liga de novo, desabafa em cima de mim, chama Carlos Frederico de irresponsável e de culpado por tudo que possa acontecer com sua filha. Parece que o mundo todo está contra mim e a desabar. Desespero-me. Uma sirene ensurdecedora de ambulância. Um aviso?
Algum acidente, com certeza. Não quero chorar, mas começo a entrar em pânico. Cadê o lexotan?
Quero um cigarro, mas o café vai fazer minha pressão subir mais ainda. Lembro quando Carlos Frederico conheceu Pamela. A primeira vez que se viram foi numa festa infantil, a brincar numa piscina de bolas, a pular e a rir muito. Quando duas pessoas se conhecem em momento de forte alegria há tendência de aparecer uma relação de amizade muito grande. No caso deles, e só tinham oito anos, nunca mais se separaram. Agora já se passaram dez anos. Quatro da manhã. Maldito relógio. Chove. As ruas devem estar muito perigosas. Motoristas embriagados, bandidos, pivetes, gangs de jovens da classe média. Chego a sentir cheiro de café, mas é só pela vontade de fumar. O telefone toca. Quase levo um tombo na pressa de atender. Era engano. Ligo para os hospitais, mas nenhuma notícia de acidente com casal de jovens. Sequestro?
Cinco horas. Sol a nascer. Jornais a chegarem. Já nem choro mais. Tenho certeza que algo de ruim aconteceu. Preciso de forças para enfrentar a realidade. Já nem ouço o relógio. Meus sentidos estão enfraquecidos. Preciso de café. Antes leio todos os jornais. Nenhuma notícia sobre os dois. Os vizinhos acordam, nunca tinha ouvido tantos despertadores, vão trabalhar. Mas para que, penso eu?
Dar o melhor para os filhos e eles, de repente, desaparecem. É como se nada na minha vida tivesse feito sentido. De nada adiantou colocar Carlos Frederico nas melhores escolas e depois perdê-lo. Por que a juventude é tão irresponsável?
Eles não têm o direito de nos fazer sofrer. Essa espera me enlouquece. São seis horas da manhã, hora da Ave Maria. Faço uma oração, a pedir já nem sei direito o quê, deixo para a mãe de Jesus decidir como isso tudo vai acabar. Relaxo um pouco, incrível como funciona a religião para nos confortar. O sono chega, mas prefiro tomar um café. O lado esquerdo do meu cérebro me avisa que tenho que ir ao Instituto Médico Legal, por pior que isso seja. Vou até a cozinha. O que é esse bilhete colado na garrafa térmica?
Um bilhete do Carlos Frederico, meu Carlito, meu Fredinho, meu Júnior. Mãe, boa noite, vou sair com a Pamela, ela também fez dezoito anos, agora é “maior”, ele sabia que eu odiava quando falava assim, mas como me soou lindo esse “maior”.
Vamos para um motel, primeira noite juntos fora de casa, estou nervoso, mas vou caprichar mãe. Fica tranquila, chego só de manhã. A mãe dela não sabe, não diz nada, preferimos não criar constrangimentos com minha sogrinha. Mas você, mãe, sei que pode ficar nervosa se eu não chegar cedo e aí deixo esse bilhete, com todo meu amor, aqui no café, que você toma todas as noites. Um beijo do filho que te ama. Durma com os anjos. Não se esqueça de rezar uma Ave Maria antes de dormir, não é o que você sempre me diz?

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