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Bento da Cruz

Nevoeiro soprado, verão sem mergulho adiado

Bento da Cruz

Escreve quem sabe

2025-02-22 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

«Fazem-me falta as cartas de Bento da Cruz. Fazem-me falta a sabedoria serena, o sentido de humor, a mestria literária. E mais falta farão eles, acredito, às terras de Barroso que o viram nascer e que tiveram nele um cronista de primeira água.»
A.M. Pires Cabral (Escritor), 2016

Faz hoje 100 anos que nascia o “príncipe do planalto barrosão”. Um homem que correu a língua deste chão como poucos. Um semeador de letras em terra bravia, longe da seara límpida e cristalina que do outro extremo de Portugal já se ouvia cantarolar.
Sereno, com voz trauteada pelos traços do pôr do sol. Uma dança estendida, em comboio, que testemunhou uma vida que atravessou grande parte do século XX. Tempos de cólera e de bonança, só entendidos por quem viu e viveu o pior e o melhor. Um letrado com sangue na guelra que nunca abandonou o pulsar da pátria. Um ser de palavras com ponto final. Firmes, plantadas no imaginário Gostofrio, chão que invoca a infância do escritor de um passado calejado por entre lama e água sem destino.
Bento da Cruz foi todo memória. Nunca virou a cara às casas colmadas, ao cheiro prenho nas paredes, ao fumo que inalava gente, quase toda, vestida de preto, por entre samarras e croças de junco, que calçava socas e socos abertos, galochas e sapatos sem sola. Muitos descalços, com unhas da cor da terra, outros sem teto a dormirem por entre vizinhos ou em cima de uma moreia de lenha estendida atrás de um escano.
Escreveu com o Barroso na palma da mão. É dele que podemos saber, com autoridade, como era ser um transmontano de palavra, sem necessidade de papel, carimbo e testemunhas para comprovarem o que antes já tinha sido dito.
Privei com este sábio da pena mais tarde do que queria. Porém, ainda fui a tempo de viver alguns fios de tarde. Quase monólogos, porque o que me interessou sempre foi escutá-lo. Ouvi-lo era ver os meus avós vivos, sentir o cheiro da bosta da vaca, do arado a aricar a terra, a torna da água no lameiro, as carradas da lenha e do estrume, os serões à lareira, os carros das vacas em piano, os burros, éguas e bestas a ruminarem as hortas de um território ímpar.
Por entre esse tempo, estive presente em palestras, entrevistas e conversas de café. Tudo no escritor era motivo de espanto. As histórias e as estórias que só ele sabia contar, farejadas com o enlevo do bigode palaciano que orgulhosamente mantinha. A plateia, miúda e graúda, observava e rapinava, aqui e ali, expressões, hoje ruidosas pelo esmagador oco social. Era este manancial de vocábulos que fazia de Bento da Cruz um baú vivo. Um repositório de um “país barrosão” em fulgor. Sem desdém. Um enredo virginal que coloca o cio em ponta de bala.
O concelho onde nasceu está a celebrar Bento da Cruz. Montalegre desdobra-se em atividades em toda a linha. A data redonda é pretexto, mas mais importante, a meu ver, era o Plano Nacional de Leitura colocar este homem, que morreu há 10 anos, nas salas de aulas pelo país fora.
Bento é mais, muito mais, do que este pedaço de Portugal. É uma lanterna que lembra a pátria que uns já esqueceram, outros têm vergonha e ainda uma franja rija que se orgulha de pertencer.
Em terra de poucas letras, Bento da Cruz, à semelhança de outros, poucos, foi estudar com a mira no sacerdócio na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos. Foi palavra que não lhe entrou no ouvido, muito menos no olhar. Seguiu Medicina na Universidade de Coimbra. Em 1955, abriu consultório médico em Souselas, na Beira Litoral. No ano seguinte, o apelo à terra fê-lo arriscar a ter um espaço na aldeia de Pisões onde ainda hoje é recordado por providenciar assistência médica gratuita a muitos conterrâneos.
Entra no mundo da escrita em 1959. A obra “Hemoptise” é assinada sob o pseudónimo de Sabiel Truta. Foram 50 anos de bem escrever por entre contos, romances e crónicas. No manto literário destaco “A Loba”, “Histórias de lana-caprina”, “Planalto de Gostofrio”, “Histórias da Vermelhinha” e “O lobo guerrilheiro”. Dos vários prémios que recebeu, foi laureado com o Prémio Fialho de Almeida, da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, em 1973, por “Contos de Gostofrio e Lamalonga”; o Prémio Literário Diário de Notícias e de Ficção da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos, em 1991, por “O lobo guerrilheiro”, e ainda o Prémio Literário de Investigação da Câmara Municipal de Montalegre (CMM), por “Victor Branco, escritor barrosão – vida e obra”, em 1995, assim como os prémios literários de ficção, da autarquia barrosã, por “O retábulo das virgens loucas”, em 1996, e o do Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa, por “A loba”, em 1999.
A escrita de Bento da Cruz é, também, um uivo permanente que lembra o contrabando e a sobrevivência da Guerra Civil de Espanha, das naus que partiram mundo fora, da bandeira desfraldada de um abril que não se esquece. Uma obra de espelho que clarifica o peso da história e a leveza da liberdade. Com voz e sem fronteiras.

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