A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2020-10-23 às 06h00
Éum vírus. Espalha-se pelo ar, pelo espirro, pelo respirar. Fica nas paredes, objetos e superfícies. Sobrevive horas, dias fora do corpo humano. Não vai chegar cá. Sabemos muito pouco sobre este vírus. Ou seja, não sabemos nada. Chegou cá. Lavar as mãos. Lavar as mãos muitas vezes, durante pelo menos 20 segundos. Cantar os parabéns. Usar máscara. Usar desinfetante. Não há máscaras e os desinfetantes atingem preços obscenos.
Fica em casa. Não saias para nada que não seja urgente e imprescindível para a sobrevivência. Fica em casa e quando regressares desinfeta tudo, despe-te na porta, banha-te em álcool-gel e põe tudo a lavar. A 30º a 40º ou a mais graus.
Aproveita para cozinhar o que nunca tiveste tempo, fazer limpezas profundas, fazer os arranjos que andaste sempre a adiar, ouvir música, ver filmes, refletir. Tornar-te uma pessoa melhor. Renascer desta clausura forçada, uma metamorfose para um mundo novo, repensado, melhorado, mais ecológico. Repara como se respira já melhor, como o mundo se regenera.
Ou então simplesmente trabalha como um condenado porque estás em teletrabalho, com crianças em casa com ensino à distância. Desesperas um bocadinho todos os dias, mas uma voz martela-te que isto vai passar, que é uma fase e que vamos conseguir. Vá lá, está quase.
Os números. De infetados, de internados, de mortos. A nossa realidade e o contraste com as outras além-fronteiras. Especialistas, muitos especialistas a alinha- rem teses, pesquisas e teorias. Todo o pessoal que trabalha na área da saúde a merecer canções, palmas e mimos. Redes informais de apoio organizam-se um pouco por todo o lado. Há ânimo, há força, há garra. Vai tudo ficar bem e nascem arco-íris como cogumelos nas florestas.
Não vemos familiares e amigos durante meses como um gesto de amor maior. O isolamento como salvação. É só por um tempo, até o bicho desaparecer. Fica em casa, fica em casa, fica em casa. Uma renovação a cada 15 dias.
A economia. Os números. A tragédia do turismo, da restauração, da gestão das fronteiras. Chegam as máscaras e as proteções individuais como tábua de salvação para muitas empresas. Toca a sair. É preciso ir para fora cá dentro, redescobrir Portugal, toda a gente volta ao trabalho, exceto quem tem crianças menores de 12 anos em casa. Vamos lá, por Portugal, sair e gastar. Portugal é tão belo!
Os números do bicho estão baixos, mas não desapareceram. O esforço colossal não foi suficiente, mas a coisa está melhor. Os transportes. Não mostrem imagens dos transportes com magotes de gente, que não é aí que se contagiam. Este vírus é seletivo. Não falem que não houve investimento nem preparação nos transportes para o regresso ao trabalho, não falem nas empresas que não aceitaram os horários desencontrados para aliviarem as horas de ponta. Não falem na baixa de médicos e enfermeiros. Não. Falem antes do investimento feito para haver mais camas em cuidados intensivos e ventiladores. Muito Bem! Mas não falem que não há médicos para depois darem a devida assistência. Não falem nos doentes que morreram por terem tido medo de procurar ajuda ou que procuraram ajuda e não a encontraram disponível. Não falem dos hospitais de campanha que vamos ter nos centros urbanos, nem na falta de recursos humanos, nem nas escolhas que já espreitam: quem vale mais?
Um paciente Covid ou um oncológico? Aposta-se tempo e recursos num enfarte ou num AVC?
E o cansaço. Sobretudo o cansaço, talvez Pessoano, talvez apenas humano, desta prova de resistência que é pedida a todos. Uma tristeza que se instala e alastra, faz mais dano do que fado.
Não falem na agonia, na mesquinhez, na maldade que emergiu mais do que qualquer outra coisa ao longo destes 7 meses. É fruto de sofrimento? Sem dúvida. Mas precisamos tanto de saber mais sobre este vírus aleatório, qual roleta russa que nuns mata, noutros agoniza e noutros é assintomático, como sobre as doenças mentais que grassam disfarçadas.
Afinal, há máscaras para todos os gostos.
15 Março 2024
08 Março 2024
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