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As Almas Perdidas da Síria

Entre laços e reencontros da Páscoa

As Almas Perdidas da Síria

Voz aos Escritores

2024-09-27 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Em 2013, Caesar e Sami (nomes fictícios) fugiram da Síria. Trouxeram um espólio de 27 mil fotografias que provam os horrores da tirania de Bashar al-Assad, déspota que impõe o regime do terror desde 2000, sucessor do pai que governou a Síria ao longo de 30 anos. Caesar era fotógrafo da polícia militar de Damasco, obrigado a registar com imagens macabras os cerca de quarenta homicídios diários, mortes perpetradas na Síria a mando das forças ditatoriais, protegidas pela conveniente impunidade de quem manobra as regras do poder. A crueldade e monstruosidade humana estão nos corpos retratados, imagens terríveis de crianças, mulheres, homens, novos e velhos trucidados, restos de carne humana despedaçada e ensanguentada, peles arroxeadas, esgares de espanto e rigidez mórbidos, cadáveres de olhos salientes a quem ninguém se deu à triste delicadeza de descer as pálpebras. É o maior espólio fotográfico dos crimes contra a humanidade de que há registo desde o Holocausto da Segunda Guerra Mundial. Não se pense que os sírios têm a mesma obsessão organizativa dos nazis, que os fazia catalogar, com rigor perfeccionista, as suas atrocidades. Caesar e os colegas do macabro ofício eram obrigados a captar as mortes diárias dos aprisionados (quatro fotografias de cada cadáver) para provarem aos seus superiores a efectiva morte daquelas pessoas, isentando-se da acusação de corrupção pela provável libertação de algum detido.

Dinheiro, petróleo e produção de armas sustentam o poder que comanda o terror e atira à miséria, ao desemprego, à fome e à fuga desesperada metade da população síria. Entre 2011 e 2014 a brutal guerra civil que assola a Síria dizimou 191 mil vidas e 100 mil estão desaparecidos até aos dias de hoje. As provas irrefutáveis do morticínio foram apresentadas à Organização das Nações Unidas. Os membros do respectivo Conselho de Segurança tentaram aprovar uma resolução que permitisse o Tribunal Penal Internacional processar o regime sírio. Mas após os votos contra da China e da Federação Russa, fiel aliada do regime de Bashar al-Assad, e na hipocrisia absurda da política e das incongruentes leis que a administram, a organização incumbida de zelar pela paz no mundo e pela defesa dos direitos humanos absteve-se que qualquer intervenção. A via da justiça internacional para os sírios viu-se interditada. A Síria vive no caos e nas trevas. Al-Assad afirma, no cinismo dos intocáveis, que o seu país é vítima de uma conspiração estrangeira e que o terrorismo tem como objectivo desestabilizar a Síria.

Recorde-se que o ditador apoia o Hezbollah e o Hamas, o mesmo ditador que assegura publicamente: nós não temos aprisionados políticos. Estranho ninguém o contestar, ninguém lhe responder: não os têm porque os matam, assassinam e torturam barbaramente, impiedosa e impunemente, presos e dissidentes e respectivas famílias. O clamor dos sírios por Liberdade, gritado pelas ruas de Damasco em 2011, é sistematicamente abafado perante a passividade das autoridades internacionais. Al-Assad ateou o inferno na terra, uma terra fertilíssima inundada de sangue, encobridora das ossadas dos desaparecidos, fustigada pelo medo e pelo furacão do despotismo. Apesar da inação das instâncias internacionais, os ficheiros de Caesar ajudam milhares de refugiados sírios na identificação dos familiares cujo paradeiro lhes era desconhecido.

Nas fotografias das páginas da internet das Associações de Desaparecidos e de Prisioneiros reconhecem as vítimas, irmãos, maridos, pais, filhos, primos ceifados na gadanha da ditadura. Os familiares das vítimas sabem por fim o desfecho dos perdidos. Apesar da confrontação da tragédia e da violência das mortes, dispõe de provas que levam alguns sírios refugiados de dupla-nacionalidade a recorrer aos tribunais em busca de justiça. Assim fez um cidadão sírio-francês que após anos de procura obteve a confirmação da morte do irmão e do sobrinho detidos nas prisões de Damasco. Assim fez uma cidadã síria-espanhola após ter a certeza da morte do irmão sumido nas brumas de terror da Síria. Porém, estes e outros casos foram rechaçados pelos tribunais europeus, declarando-os desenquadrados da sua instância. Somente a Alemanha processou e julgou Anwar Rascan, antigo coronel da secção 251 da polícia torcionária síria, condenando-o a prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Não obstante a surdez da justiça internacional e de cada país, a luta pelos sírios continua na coragem de jornalistas, advogados, opositores ao regime, familiares e associações. Provas disso são o empenho da advogada espanhola Almudena Bernabeu e o documentário de Stéphane Malterre e Garance Le Caisne com o mesmo título desta crónica: As Almas Perdidas da Síria.

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