Correio do Minho

Braga, quinta-feira

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Amor soldado

Os bobos

Conta o Leitor

2014-08-17 às 06h00

Escritor Escritor

SARA OLIVEIRA

Inclinou-se sobre o dorso, apoiou a folha nos joelhos e abriu o coração:
- Querido Z...
Do outro lado do mundo, numa parte que anda constantemente em guerra, num dos escassos minutos de paz, um soldado sentara-se à direita da sua arma, no meio de uma dos milhares de trincheiras que se perdem de vista.
- Meu amor...
No mesmo compasso, como é digno de almas gémeas, ainda que com uma diferença horária de múltiplos sessenta minutos, em cenários completamente distintos, dois pensamentos choravam o mesmo amor.
- ...tenho tantas saudades tuas que o meu coração parece diminuir a cada dia que passa. - E o órgão vital diminuiu mais um bocadinho. - Sinto a tua falta como mais ninguém ousara sentir falta de alguém. Eu sei que a saudade está presente em todos, que todas as pessoas sofreram, sofrem, ou sofrerão do mesmo que eu, mas não acredito que seja da mesma maneira. Não que eu seja melhor, apenas guardo dentro de mim um sentimento deveras maior que qualquer outro.
A casa está igual, mas ao contrário do meu coração, parece duplicar de tamanho a cada segundo. Ainda não mudei a fronha da tua almofada, tão pouco a tirarei da cama. Desculpa. Já começo a perder a moral de te gritar para mandares a roupa para lavar, eu sei, mas não tenho conseguido. Não por falta de tempo (que esse tenho que sobre agora que tu cá não estás e emprego é coisa que por aqui não há), mas por ser o meu refúgio, o nosso, e querer conservar o pouco cheiro que resta, teu, aqui. Já lá vão 6 meses, fez ontem, desde que a minha vida perdeu o seu rumo. Tenho tantas mas tantas saudades tuas... - e nesta fração de segundo já não havia força que contivesse as lágrimas que, desde o início da carta, teimavam sobressair sobre as sardas do rosto cara abaixo.
A milhares de milhões de quilómetros, um rosto igualmente lavado em água salgada desfalecia de olhos postos num pedaço de papel encharcado de dor.
-...sinto muito a tua falta. Da tua força, do teu espírito alegre e encantador. Do teu sorriso, e desses olhos rasgados minha chinesinha.- Ele sempre a tratara assim, diz que ela vem da China e que come muito arroz, por isso é que os olhos dela quase fecham quando ri. - Se bem te conheço, deves estar a sorrir agora... e sorri amor, sorri sempre. Por mim, por ti, por nós e pelo nosso pedaço de mundo colorido. E quando deres por ti já estou de novo ao teu lado, eu prometo. 
As coisas aqui não estão fáceis, parece que o mundo caiu numa alquimia de cores em escala de cinzentos. Nem em degrade, como tu gostas, são. É tudo cinzento, mas em tons ao calhas, e a cada dia o preto toma conta de nós. Preto de luto, de guerra, de fome. Aqui, neste sítio horrível, nem as crianças são poupadas. Tenho medo, medo que um dia este preto opaco se alastre por todo o lado e consuma a pouca luz que resta. Medo que um dia também tu tenhas de ver coisas assim, cinzentas e borratadas. Que a humanidade não passe disso mesmo, um borrão a tinta-da-china. 
Com muito amor, daquele que te vai querer sempre, Z.
PS: Muda a fronha da almofada, em troca podes gastar todo o frasco de perfume que deixei na última gaveta da cómoda.
No país em que outrora o povo fora destemido e lutador, de onde partiram os heróis dos descobrimentos e onde nasceram nomes ilustres como Pessoa e Camões, um corpo nu e gelado tenta amizade com a cama. Na solidão de mais uma noite fria, no escuro de uma casa vazia, chora. Entoam-se os gemidos de dor, por todo o lado sente-se o cheiro a amargura. Lá fora o mundo prossegue a olhos vistos, sem que ninguém dê pela ausência do amor. Mas ela dá, bem demais. Foi por causa dele que o dela partiu, foi por não haver amor entre os homens, que o amor da vida dela está em missão de ajuda nos países de Leste. 
-... Volta, volta rápido! Não suporto viver tanto tempo sem o teu amor, ainda que me console saber que é por o estares a repartir com quem mais precisa. Pergunto-me como conseguem as pessoas viver uma vida inteira sem o amor de ninguém?
Da tua sempre fiel apaixonada, chinesa X.

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