Correio do Minho

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Amélia, Rainha sem Reino

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

Escreve quem sabe

2018-10-05 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Nasci no exílio. Morrerei no exílio. De lá não se volta, regressa-se ao exílio, repetido, doloroso, imerecido. Perdi os que mais amava, de Portugal fui escorraçada, mátria madrasta que eu venerava. A mão enrugada navega pelo papel, mão oscilante como aquele batel, a barcaça de nome Bonfim, irónica graça no meu fado que parece rir-se de mim. Na barcaça seguíamos tristes e pesarosos, de Portugal nos afastávamos a cinco de Outubro de mil novecentos e dez, o meu país sagrado que cuidei de lés-a-lés. No “Amélia” embarcámos, a mágoa a afogar o medo, a dignidade mantida no caminho do degredo.
Era uma jovem ingénua e romântica quando a terras lusas cheguei, personagem dos contos de princesas felizes para sempre, noiva apaixonada e crente que se enamorou de Portugal eternamente. As ondas do mar, o cantarolar das varinas, o deslizar do Tejo, a luz de Lisboa, Sintra e o Alentejo. Saudosas memórias que em mim protejo.
Vivi agraciada nas boas-vindas, arremessos de flores, bandas sonoras, largares de pombas, discursos de louvores.
Vivi tempos benfazejos, no enganador prolongamento das cortesias e beijos.
Fui mãe do herdeiro, duma filha Ana que expirou ao nascer, dum terceiro filho que também veio a falecer. O amor pelo Rei deixei-o esvanecer. Apercebi-me que não comungávamos do mesmo viver. As traições ferem, chagas profundas de sangue a verter.
Vivi em castelos de espectros e ingratidão, em palácios de penas e desilusão, desenhei-os, pintei-os para espantar a solidão. Fui Rainha sombra, Rainha fantoche, Rainha de voz sumida. A minha razão era pelos homens esquecida.
Salvei afogados, alimentei pobres, sanei tuberculosos, amparei desgostosos. Restaurei património, edifiquei museus, estendi os abraços às gentes e as súplicas a Deus.
Deus emouqueceu no dia em que mais lhe gritei, o meu filho amado em colo materno tombado, a esvair a vida com o pai morto ao lado. Dia um de Fevereiro de mil novecentos e oito, no Terreiro do Paço o regicídio às mãos de um devasso. Foram dois, soube-o mais tarde, os que meu filho assassinaram e minha alma levaram. Por que o fizeram? Por que o mataram? Cobardes, biltres, aleivosos, por que tanto nos odiaram?
Vivi enlouquecida, fêmea que perde a cria, mãe vazia, a fingir forças que não sentia, a dor a trespassar-me, a alentar-me que Manuel Rei seria.
O meu primogénito foi-o, um reinado de minutos, o menor das egrégias dinastias lusitanas. Criei-o no respeito, ensinei-o a amar o povo, do povo se apiedar, de todo o mal dele afastar, o bem da nação e do Império em primeiro lugar. Eduquei-o na humildade, a compreender o desigual, a aceitá-lo como tal.
Guardo o amor que lhe devotei, o amor que vive em mim, o amor puro sem lei.
Guardo a roupa que nesse dia vestia e não lavei, roupa manchada do sangue da vida que lhe dei, com ela trajada para a tumba irei e em Portugal enterrada serei. Será essa a minha derradeira vontade, façam-na cumprir por respeito ou bondade, porque portuguesa desde a boda me considerei.
O meu epitáfio, em mármore frio como a mão que navega nesta folha, dirá: “AQUI DESCANSA EM DEUS D. AMÉLIA DE ORLEÃES E BRAGANÇA RAINHA NO TRONO NA CARIDADE E NA DOR”.
Naquele cinco de Outubro de mil novecentos e dez nasceu a República e morreu a Monarquia Portuguesa. “Do país ao qual tanto quis, ao qual tanto dei e sacrifiquei e que todas as dores, todas as desilusões, todas as amarguras me fez sofrer, não levo senão esta suprema consolação: a consciência do dever cumprido sempre além das forças humanas.
Essa consciência, que é o meu conforto, a minha força, ninguém ma podia dar, ninguém ma podia tirar. E isso basta-me. De nada mais lhe quero falar, pois seria senão para argumentar ainda tanta tristeza, tanta indignação, que me enchem o coração”.

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