“Portanto, saibamos caminhar e …caminhemos!”
Escreve quem sabe
2023-03-18 às 06h00
Nos últimos anos do século IV, Agostinho de Hipona pediu a Deus nas suas Confissões (8, 7:17): “Senhor, dai-me castidade e continência, mas não já”. Quatrocentos anos antes, o poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a.C. -17 d.C.) escreveu o poema narrativo Metamorfoses (ano 8 d.C.) onde se lê “Vejo o melhor e aprovo-o; porém, sigo o pior”. Recuando mais meio milénio, Platão, no diálogo Protágoras (353a), colocou Sócrates a dizer “a maioria das pessoas não faz o que é melhor, embora tenha conhecimento disso”.
Cada um desses três conhecidíssimos autores definiu, assim, ao seu modo, o fenómeno da acrasia, frequentemente descrita como uma debilidade da vontade, ausência de ação quando ela é necessária (e.g., ficar em silêncio quando se reconhece que o melhor é falar) e, às vezes, como incontinência, uma vez que essa debilidade se pode manifestar como realização de ação quando ela não deve ocorrer (e.g., falar quando se reconhece que o melhor é ficar em silêncio).
O comportamento acrático, em princípio, manifesta-se individualmente. Todavia, há quem, como Philip Pettit, tenha considerado a possibilidade da acrasia coletiva. Segundo esse filósofo irlandês, não somente indivíduos, mas também grupos podem ter comportamentos dessa natureza. Como? Assumindo que os grupos se podem comportar como agentes com estados intencionais – isto é, com uma sintonia de intenções entre os seus membros individuais – e que levam a sua coerência interna a sério, uma vez que se assim não fosse deixariam de funcionar como grupos, então, se em determinadas situações os seus membros deliberam de modo racional, concertado e maioritário sobre um assunto e depois não agem em consonância cometem acrasia, porquanto não atuam de acordo com os melhores interesses decididos pelo grupo.
Talvez resida aqui uma explicação para o persistente fracasso a que temos assistido no combate às alterações climáticas, em particular ao aquecimento global: a comunidade científica apresenta evidências sobejas da sua existência e indica o que deve ser feito para o seu controlo, mitigação e reversão, mas a comunidade política internacional não as consegue pôr em prática atempada e eficazmente, apesar de os estados-nação que dela fazem parte, em coro, assentirem na sua urgência. Verifica-se, pois, a seu respeito, um hiato entre o conhecimento disponível e a ação exigível em face do mesmo.
A acrasia, individual ou coletiva, constitui uma patologia. Todavia, não deve ser identificada com a mera preguiça, enquanto aversão ao esforço. Ela é, antes, uma forma de irracionalidade, porquanto um indivíduo ou um grupo sabe o que se impõe como melhor a ser feito, mas, ainda assim, não o consuma; ou, dito de outro modo, um indivíduo ou um grupo não atua de acordo com o seu melhor interesse.
No caso do combate às alterações climáticas esta irracionalidade tem-se revelado sobretudo nas Conferências das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, a última das quais, em 2022, em Sharm-el-Sheikh, Egito. No decurso das mesmas desfilam cientistas de renome mundial, chefes de estado, líderes de empresas multinacionais que reconhecem o perigoso aumento dos riscos catastróficos globais das alterações climáticas e prometem ações conjuntas calendarizadas para fazer diminuí-los depressa, mas assim que se metem nos seus jatos após as COP logo retomam o padrão da inconsequência acrática.
Um dos grandes desafios que os filósofos hoje enfrentam, sobretudo os que se dedicam à epistemologia e à ética, é o de descortinar como curar esta patologia.
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