Os bobos
Escreve quem sabe
2022-03-20 às 06h00
Terça-feira, Alla R. pedia-me que ajudasse a sobrinha e os sobrinhos-netos que com ela chegariam a Lisboa. Alla R. vive em Odessa. Alla R. é uma russa de Odessa. Estudamos juntos em Moscovo, findo o que a generalidade de nós regressou às origens, para vidas próprias e glorificação do Saber soviético. Havia muita endoutrinação, mas todos lhe passávamos por cima. De mim confesso, creiam-no ou não, que estudei com aprumo, licenciei-me e, apesar de não ter feito carreira, os estudos eram de qualidade. Distintos dos ocidentais, naturalmente, mas livre-nos Deus de quem veja o mundo a uma cor, a um paladar. Enfastia, e no fim mata.
Administrativamente na Ucrânia, Odessa era uma cidade russa. Ou judaico-russa, se quiserem. Com ucranianos contaria, certamente, assim como com moldavos, caucasianos. Entrecasavam-se por amores, pouco levando em conta ditames de outra ordem, salvo os do Cáucaso, zelosos de ancestralidades. Falo do que nos anos oitenta era voga, e que se terá pro- longado por mais década ou duas, com jeito três, até que alguém se lembrou de desqualificar a língua russa, criando um quadro de subcidadania inabsorvível pelos russófonos.
A talhe de foice recordo Tarasse Chevetchenko, poeta e pintor do seculo XIX, nascido servo da gleba em terras ucranianas do Império Russo. Realço que alcançou educação em São Petersburgo, na capital, portanto, e que resgatado foi à servidão por recolha de dinheiros em tômbola, tendo por prémio um retrato do poeta russo Jukovski. Pois Chevetchenko, que deportado foi por conspiração contra o Czar, outra aspiração não nutria que a da substituição do Império por uma federação de repúblicas eslavas. Ideia que poderia ter sido concretizada século e meio depois, mas assim não foi querido em bem. Ideia que Putin persegue, mas claramente a mal.
Como já escrevi, estou inteirado de que na sequência da Revolução de Outubro se desencadeou uma guerra civil nos Go- vernos da Ucrânia, a termo com desenlace favorável para os bolcheviques; sei, também, que a coletivização dos anos trinta foi um pesadelo de morte. Mas o que julgo saber, ainda, é que nos anos oitenta os azedumes estariam sanados e que, com a desagregação da URSS, nada de substancial obstaria a que o desígnio de Chevetchenko não encontrasse espaço de realização, até porque recombinados estavam os povos.
Sobreveio, então, o ano fatídico de 2014. Encontro no «Figaro» de quinta-feira um artigo curioso sobre a participação de tchetchenos dos dois lados dos beligerantes. O artigo centra-se em Muslim Cheberloyevski, que nos diz que de há anos combate os russos – desde as guerras da Tchetchénia –, reconhecendo que ele e os seus milicianos vieram em apoio dos ucranianos contra os russos, aquando da sublevação de Maidan, coisa que eu desconhecia.
Em resumo, é universal e justificado que tenhamos retina para o último que asneira, sobretudo se não formos com a sua cara. É evidente, em adição, que a guerra que se desenvolve é assimétrica, mandando os bons princípios que assistamos o mais fraco e que contenhamos o mais forte, chamando-o a razões. Mas convirá que ponderemos as suas.
Em comentário anterior, dizia Alla R. que os americanos estavam dispostos a defender a democracia até ao último ucraniano, de nacionalidade ou cidadania. Ora a democracia é muitas coisas, e nós até da nossa nos queixamos. A reviravolta de 2014, pelo que aprendo de Cheberloyevski foi tudo menos democrática. Mas desde então que vimos martelando que encarnamos o Bem, enquanto que outros encarnam o Mal. E eu que só me lembro do bombeiro incendiário!
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