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Adormecer sem pressa

Ettore Scola e a ferrovia portuguesa

Adormecer sem pressa

Escreve quem sabe

2022-02-28 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

Pai, no que pensas? Penso naquelas crianças que estão lá fora, indefesas, com frio e tristes. Se foste lá fora e viste crianças com frio, porque não as trouxeste para casa? Tento não espelhar, na minha expressão facial, a extrema frustração e total desânimo perante as tristes notícias sobre a atual situação na Ucrânia. Infelizmente, hoje, não o consegui fazer. Sinto que há momentos em que a vida, tal como as pessoas, opta por sinuosos caminhos, sem fazer as devidas pausas para refletir nas consequências. Surpreende-nos assim, repentinamente, como rajada de um míssil que rasga os céus de Kiev, numa noite em que pretendia apenas adormecer sem pressa. Hoje são singelos os amedrontados desabafos. O frio congela o choro das crianças sentadas nos colos. Os curtos caminhos parecem infindáveis e desgovernados. Pela manhã, noticiam-se repetidas notícias, acrescentam-se sanções. A triste história repete-se, mas com diferentes protagonistas.

Releio o livro da psicóloga Ana Moniz. Este livro não é mesmo para fracos. Folheio as páginas que me presenteia. Encontro também uma referência aos perigos da obediência da experiência de Milgram. Quando a ganância de um indivíduo ultrapassa a legítima liberdade do outro, o que existe de mais altruísta no homem emerge maquiavélico das profundezas. A autora aborda este estudo para explorar, também, a questão da coragem. Porque é na coragem de um líder e na união de um povo que se vencem os obstáculos provocados pelos amedrontadores. É preciso saber dizer não e basta, com coragem e assertividade.

Não sei se conhecem a experiência de Milgram, publicada em 1963. Aos participantes que se voluntariassem, seria garantido algum retorno financeiro. Apeteceu-me relembrá-la. Nesta experiência foram selecionados aleatoriamente diversos pares de voluntários, sendo um deles o professor e o outro o aluno. A ideia deste estudo incidiu, em particular, no professor, sendo o aluno um mero ator na experiência. O objetivo pretendeu demonstrar até que ponto o professor obedeceria às instruções do cientista Williams, independentemente do possível dano que estivesse a infligir ao aluno, sentado numa sala contígua e da qual não tinha qualquer visibilidade. À sua frente estariam trinta pequenos interruptores, dispostos de forma horizontal. Aplicar-se-ia ao aluno um choque, por cada pergunta incorretamente respondida ou não respondida. As voltagens espoletadas por cada manípulo, variavam de leve até extremamente severa, dos 15 até aos 450 volts. Para iniciar esta experiência, aplicou-se uma voltagem real de 45 volts ao professor, como manifesta prova da fidedignidade da experiência. Ao longo da mesma e à medida que diferentes voltagens estariam a ser aplicadas, ouviam-se gemidos e sucessivos pedidos de socorro. A partir dos 300 volts, o silêncio toma conta do espaço. Quando os professores perguntam a Williams se devem prosseguir, escutam que a experiência deverá continuar até ao final.

Durante o ano de 2013 até finais de 2014 tive a sorte e a oportunidade de participar num dos mais fascinantes projetos da minha carreira profissional em Zagreb, na Croácia. Metade da nossa equipa era ucraniana e a outra metade russa. Na minha opinião, foi por lá que descobri o verdadeiro sentido de responsabilidade e cooperação de todos, algo que nos permitiu caminhar sempre lado a lado para o sucesso daquele complexo projeto. Não tenho dúvidas de que juntos fomos mais fortes e em uníssono escrevemos uma página que nos encherá para sempre de orgulho.
A minha filha fez-me uma simples pergunta. Não fui competente para lhe dar uma resposta esclarecedora. Também não sei se ela existe. Felizmente, as nossas crianças prontificam-se sempre a descomplicar a complexa vida, esclarecendo as suas próprias perguntas com inimagináveis respostas. Assim deveria ser tudo o resto, como a intenção de qualquer homem poder traçar o seu caminho.
*com JMS

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