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Braga, terça-feira

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A velha e a muda

A responsabilidade de todos

A velha e a muda

Conta o Leitor

2020-07-03 às 06h00

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Texto Maria Clarinda Alves

Todas as sextas-feiras, com a força da manhã, a velha Riquelina levantava-se para mais um dia de feira. Cinco da manhã e já ela saracoteava de um lado para outro: cinco galinhas para o cesto, mais dois coelhos, umas verduras e alguma fruta da época — gabava-se ser a primeira a colhê-las lá pelas redondezas —, tudo tapado com um pano de linho, apenas as cabeças das galinhas, de crista erguida, ficavam de fora. De seguida, provia os animais na corte e depois de tomar dois goles de cevada com um pedaço de broa, encostava-se ao muro e fazia deslizar o pesado cesto para a sua cabeça. E já eram seis e um quarto. Atravessava ligeira pelos campos e quando chegava à calçada, Riquelina olhava para a curva da estrada, lá ao fundo, de onde saía a camioneta às sete em ponto.
Não sabia ler e o único relógio que tinha em casa, tal como ao marido, há quinze anos que o coração tinha parado. No entanto, o sol, a direcção do vento, as nu- vens, a cara do tempo guiavam-na. Nunca a haviam conseguido enganar nem adiantado a camioneta.

Riquelina nem precisava de se meter nessas canseiras, mas esta mulher solitária que morava num lugar ermo de uma freguesia com poucos habitantes que se juntavam apenas ao domingo na missa, tinha fome de ruído, de gente, de conversa. Na camioneta já conhecia quase toda a gente, na feira tagarelava com as vizinhas de lugar. Trazia o cesto carregado de alimento físico e levava-o cheio de conforto, novidades, boas falas e até de algu- mas saborosas querelas com as colegas do lado, ora por causa dos preços ora pela comparação dos produtos.
Riquelina não admitia comparações, e nisso tinha razão, os seus produtos eram de primeira.

Por volta do meio-dia já tinha tudo vendido, e deixando o cesto a guardar no sítio do costume, Riquelina ia à pensão do costume comer o prato do costume: vitela assada e aquele arroz que adorava, seco como o milho que dava às suas galinhas, mas que não sabia fazer, e uma boa malga de vinho. Ia à igreja, rezar a S. Bento e, como a camioneta de volta só partia às cinco e meia da tarde, para enganar a es- pera, Riquelina, como de costume, dis- solvia-se com as outras pessoas pelas ruas, adorava os prédios, as casas, todos tão juntinhos, onde as pessoas podiam ver-se, falar-se, até zangar-se, parava de- fronte às montras cheias de coisas que, embora não soubesse para que serviam algumas, achava lindas.

Numa tarde de chuva miudinha, aguar- dando a hora de regresso, Riquelina viu Borinha sentada num banco molhado junto à paragem das camionetas a chorar copiosamente. Borinha era uma rapariga muda que aparentava ter uns trinta anos, que servia de “burra de carga” às vendedeiras a troco de qualquer coisita para comer e que era também o motivo pelo qual Riquelina desconversava a sério por entender não estar certo aproveitarem-se assim da rapariga sem família, sem lar, que vivia da pouca caridade alheia. Entre soluços e lágrimas, Borinha não conseguia gesticular a resposta para a pergunta de Riquelina, mas as marcas que ela tinha nos braços e nas pernas, indicavam que lhe tinham batido com violência. A partir daí, Riquelina tomou a peito aquela rapariga. Não encontrou família, as pessoas da Vila diziam que a conheciam desde sempre. Uns diziam que outros haviam dito que já nascera muda, outros que um cão lhe comera a língua em pequena, outros... Como Borinha não era de ninguém, Riquelina levou-a consigo. As duas mulheres completavam-se.
Riquelina tagarelava o dia todo, Borinha, sem emitir um único ruído, gesticulava conforme o tom e o som da conversa.

Todas as sextas-feiras, de manhã cedo, as duas dividiam o peso por dois cestos, repartiam os trabalhos, tomavam uns goles de cevada com um pedaço de broa e seguiam para a camioneta.
Riquelina começava a ficar velha de- mais para tal canseira e tamanha lide, mas estava feliz. Borinha aprendera depressa, os dedos e os gestos eram a sua língua. A velha sabia que, quando os seus dias acabassem, aquela rapariga, de quem nem sequer o verdadeiro nome sabia, iria com certeza levantar-se às cinco da manhã, encheria os cestos e, depois de uns goles de cevada com um naco de broa, encostar-se-ia ao muro para fazer deslizar o cesto para a cabeça e partiria para a feira onde ocuparia o lugar e o respeito que lhe deviam. Borinha seria a continuidade de Riquelina e, acima de tudo, manteria a sua alma viva naquela casa, naquele lugar ermo.

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