A calculadora, o tradutor, o corretor e a combinadora
Ideias
2025-06-22 às 06h00
Estamos a viver, nestes dias, as festas religiosas e populares da nossa região, como é o caso das Festas de São João, que decorrem atualmente em Braga.
As várias festas que decorrem na nossa região atraem milhares de pessoas e mantêm uma vertente tradicional que perdura há décadas, ou mesmo há séculos.
Uma das tradições que resistiu na nossa região durante o século XX e até à primeira década do século XXI foi a célebre “Vaca do Fogo”. A Vaca do Fogo consistia numa estrutura em madeira, imitando de forma simples o corpo de uma vaca, rodeada de pequenos explosivos e transportada por um homem.
Presume-se que a origem da Vaca do Fogo remonte à cultura mediterrânica, concretamente às civilizações Grega e Romana.
A fisionomia da vaca poderá estar associada à divindade feminina, enquanto a do touro se liga à divindade masculina.
Esta tradição teve um grande impacto em Espanha, com os célebres “toros de fuego”, havendo localidades no país vizinho que utilizavam, inclusivamente, animais reais. Noutras localidades, os animais eram substituídos por armações em madeira que se assemelhavam a este tipo de figura.
Em Portugal, foi no início do século XX que esta tradição ganhou grande relevância durante as festas religiosas e populares de verão. A sua presença destacou-se, sobretudo, em concelhos do distrito do Porto, como a Trofa, Penafiel, Valongo, Felgueiras, Paredes, Paços de Ferreira e Lousada.
Esta tradição ganhou também adeptos noutras regiões, como foi o caso do Minho. Destacam-se, entre outras localidades, Vizela, Apúlia e Esposende, bem como várias freguesias do concelho de Barcelos - como Barqueiros, na Festa de Nossa Senhora das Necessidades; Couto de Cambeses, na Festa de São Tiago; e Bastuço São João, na festa de São João.
Também em Braga, nomeadamente em Arentim, na Festa do Divino Salvador, e em Cunha, na Festa de Nossa Senhora do Carmo, assim como em Vila Nova de Famalicão, em Santiago da Cruz, na Festa do Senhor dos Aflitos e do Padroeiro Santiago.
Proibida desde 2016, a largada da Vaca do Fogo ocorria habitualmente após a meia-noite, repetindo-se por volta da uma, das duas e até das três horas da manhã.
Durante o evento, os grupos musicais interrompiam a sua atuação à meia-noite, dando lugar à largada da Vaca do Fogo, que percorria o recinto da festa, perante a corrida desenfreada da população.
A Vaca do Fogo, uma caixa em madeira, pintada de forma a assemelhar-se a um bovino que lançava fogo, era transportada por um homem ou rapaz da freguesia, que ganhava notoriedade pela sua robustez ou pela forma destemida como enfrentava essa tarefa. Eram, normalmente, os cidadãos mais valentes ou arrojados da terra que se aventuravam a carregar a Vaca do Fogo, tornando-se figuras de destaque nas festas locais.
Segundo Marcelino D. Pereira (“Estrela de Faro”, n.º 25, setembro de 1980) “nem todos os indivíduos serviam para desempenhar esses papéis. É que a história da «vaca do fogo» com todo o seu cortejo de folguedos, parece que andava só em três ou quatro famílias, segundo relato há dias ouvido contar a uma bem lúcida octogenária...”.
Escreve Marcelino D. Pereira que naquela época existiam “homens folgões e foliões, sujeitos comunicativos e de hilariante piada de escarnecer certas trajetórias menos certas. E, segundo essa mesma octogenária (a senhora Isaura Magalhães Barros Lopes, de 80 anos de idade) me relatou e comentou sobre esses folguedos, os principais mentores, organizadores e executantes da paródia da «vaca do fogo», eram os irmãos Norelhos; os Postiços; os Pardejos; os Poças, etc., e que então davam extraordinário ânimo às ditas brincadeiras ...”.
Quando a Vaca do Fogo percorria o recinto da festa, no meio da multidão em fuga, o espaço ficava praticamente deserto, pois todos se afastavam com receio da sua passagem.
Muitos populares participavam na festa e esperavam ansiosamente pela hora da largada da “Vaca do Fogo”, pois consideravam o momento mais alto das festividades. Outros, pelo contrário, mal anunciavam sua a largada, regressavam imediatamente a casa, com medo das consequências que daí poderiam advir.
No início do século XX, esta tradição começou a desaparecer por várias razões. Uma delas relacionava-se com os incêndios que, por vezes, ocorriam como consequência do fogo lançado pela “vaca”. Por outro lado, as corridas desenfreadas de alguns populares acabavam por provocar ferimentos, alguns deles com gravidade.
O caso que levou à proibição da Vaca do Fogo ocorreu a 31 de julho de 2011, durante a tradicional Festa do Senhor dos Aflitos, em Lousada, quando um jovem de 16 anos foi atingido num olho por uma “bicha” - um foco de incêndio lançado por uma Vaca do Fogo que então percorria o recinto. O jovem sofreu ferimentos graves num dos olhos.
O caso foi levado ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, tendo daí resultado numa providência cautelar que, em 2015, proibiu a largada das tradicionais Vacas de Fogo. Importa referir que estes artefactos não cumpriam a legislação em vigor, uma vez que, em Portugal, o uso de dispositivos pirotécnicos é proibido por lei.
No entanto, tratando-se de uma tradição muito acarinhada pelas populações das localidades anteriormente mencionadas, eram frequentemente abertas exceções, desde as Câmaras Municipais aos organizadores das festas, passando pelas autoridades policiais, que muitas vezes optavam por ignorar o lançamento das Vacas de Fogo.
Esta tradição popular, muito centrada em algumas localidades do Porto e de Braga, inspirou mesmo uma composição musical da autoria de Pedro Ayres Magalhães, um dos grandes mentores dos Madredeus, acabando por dar visibilidade nacional a esta tradição nortenha. Intitulada “Vaca de Fogo“, da letra consta:
“À porta daquela igreja
Vai um grande corrupio
À porta daquela igreja
Vai um grande corrupio
Às voltas de uma coisa velha
Reina grande confusão
Às voltas de uma coisa velha
Reina grande confusão
Os putos já fogem dela
Deitam fogo a rebentar
Os putos já fogem dela
Deitam fogo a rebentar
Soltaram uma vaca em chamas
Com um homem a guiar
Soltaram uma vaca em chamas
Com um homem a guiar” (…)
Nos últimos dois anos, têm surgido tímidas tentativas de reavivar esta tradição popular.
No entanto, para que a Vaca do Fogo possa regressar de forma segura e legal, é necessário clarificar a legislação, garantindo que a sua realização não traga consequências negativas para quem aprecia assistir a este momento tradicional.
Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.
Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.
Continuará a ver as manchetes com maior destaque.
Faça login para uma melhor experiência no site Correio do Minho. O Correio do Minho tem mais a oferecer quando efectuar o login da sua conta.
Se ainda não é um utilizador do Correio do Minho:
RegistoRegiste-se gratuitamente no "Correio Do Minho online" para poder desfrutar de todas as potencialidades do site!
Se já é um utilizador do Correio do Minho:
LoginSe esqueceu da palavra-passe de acesso, introduza o endereço de e-mail que escolheu no registo e clique em "Recuperar".
Receberá uma mensagem de e-mail com as instruções para criar uma nova palavra-passe. Poderá alterá-la posteriormente na sua área de utilizador.
Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos.
Deixa o teu comentário