Recordando o 75.º Aniversário do Escutismo nos Açores
Ideias
2024-07-20 às 06h00
Início de noite (agradável), numa rua de uma cidade portuguesa:
- Ó Sr. Varredor, chegue-me esses cartões que vai deitar fora, por favor. Dão-me jeito – disse Maria João, uma sexagenária que vive na rua. Uma “sem abrigo” já conhecida naqueles lados. Ocupa, todas as noites, a entrada de um armazém, oportunamente resguarda sob uma galeria circundada de colunas que suportam aquele edifício, sob o qual pernoita. Sítio discreto e dificilmente visível mesmo para quem passa naquela rua. Os cartões ajudam-lhe a atenuar a agrura fria do chão em cimento. Maria João, apesar de ter um ar muito mais envelhecido do que o que seria expectável para a sua idade, muito embora sofra de tuberculose e tenha um feitio fugidio, é lucidamente observadora do seu mundo – mundo esse circunscrito basicamente à “sua” rua. Pesa cerca de 39 kg, mas tem energia e assertividade suficientes para dizer com um certo fel irónico o que a irrita. E conversa, fala à vontade com quem quer que seja, como se todos (os transeuntes ocasionais, os “vizinhos”) fossem velhos conhecidos. Conhece-os, efetivamente, pois já lá vão dois anos de observação ao relento. O Varredor responde-lhe:
-Ó Minha Senhora, eu não sou um varredor. Eu sou um auxiliar de limpeza de superfícies urbanas! É assim que se chama o que eu faço. E pronto, eu chego-lhe os cartões!
- Ai és?! Então é assim que agora se diz varrer?! Olha – continuou Maria João – então se ficares sem trabalho, não és desempregado. Deves passar a ser um ex-auxiliar disso que disseste! Que mania….
Maria João aparentemente não se impressiona com a terminologia que, circunstancial e oficialmente, se adota. Não liga às narrativas; porém, talvez isso seja o ténue e amargo privilégio de quem não tem nada e não pode ligar a quase mais nada que não seja a sua sobrevivência imediata. Todos nós, ao contrário da Maria João, acabamos por ser permeáveis às narrativas. E a política (tal como a guerra) é, cada vez mais, o campo das narrativas. Narrativas que se inculquem no subconsciente; não interessa tanto a realidade. Fazer política é, sobretudo, comunicar eficazmente uma certa narrativa que mereça a aderência dos eleitores. E as guerras também se ganham – pelo menos numa certa fase – pela força da narrativa dominante, pela impressividade das imagens que se divulgam e repetem até à exaustão (mesmo sem grande suporte factual ou sem grande rigor). O que primeiramente começa por importar, mais do que factos, são impressões! Tanto mais assim é, quanto menos tempo, paciência, disponibilidade para análises críticas, vamos tendo.
Isso tem, desde logo, duas consequências (duas, entre várias): vai-se perdendo, na voracidade do imediatismo, o sentido de ordem, de “dever-ser” como ponto de referência para as decisões que tomamos – nomeadamente de caracter político. Há uma perda generalizada do sentido e do pensamento normativos. O Direito é percecionado como estranho, desnecessário e sem justificação que não seja complicar-nos a vida com formalismos. Pior, perde-se o sentido popular de que o Direito existe e de que precisamos dele. Pior ainda: deixa de se identificar o Direito com a Justiça. Antigamente, de um modo popular, era relativamente vulgar a expressão “não há Direito!”, com o sentido, precisamente, de que não há Justiça. Hoje, não…perdeu-se essa associação instintiva e popular. Perdeu-se a sensibilidade normativa (que não tem nada a ver com saber-se tecnicamente, ou não, Direito). O Direito (uma certa sensibilidade normativa que, outrora, mesmo entre quem não tinha grande literacia, existia) serve, desde logo, para não cairmos na ilusão de que o que parece, realmente é! E, nesse sentido, é um instrumento de conhecimento da realidade…real. É um fator de equilíbrio, de ponderação. Permite-nos ver, para além das impressões imediatas que, por via de regra, são irrefletidas. Não nos deixa esquecer que a realidade é bem mais complexa do que as impressões que temos sobre ela.
Por outro lado (segunda consequência da “ditadura” das meras narrativas e impressões), a política torna-se, ela sim, e não o Direito, cada vez mais inútil. Se a nossa decisão (como eleitores, como atores políticos ou como cidadãos) é cada vez mais reflexo da nossa adesão a uma mera narrativa, independentemente dos fatos que a motivam (se é que tais fatos porventura existem mesmo), então a política não servirá para resolver problemas reais das pessoas; não será uma via para a, tanto quanto possível, boa gestão da “res publica”. Decidimos politicamente com base nas imagens, independentemente do respetivo substrato. Os “spins doctors”, os assessores de comunicação é que, cada vez mais, serão os políticos. As imagens, as impressões, quaisquer que sejam desde que impactantes, valem mais do que mil ideias ou propostas concretas. A sensação impõe-se à razão e a narrativa dominante, quanto mais imediatista e básica, ainda que inconsequente, passa a ocupar o lugar da política. Quem diz narrativa, diz imagens, atitudes, “palavras de ordem”, comportamentos disruptivos (bons ou maus). É a vitória de um certo senso comum imediatista que raras vezes se conjuga com o bom senso! Digamos que este, o bom senso, realmente é uma …chatice. Uma ideia que não se consiga “passar” em poucos segundos, tal como se fosse uma mensagem publicitária, atualmente é entediante. Vivemos na era da comunicação epidérmica, não cerebral. E, convenhamos, um pouquinho de sensação de festa, de rebeldia adolescente ou de emoção não faz mal a ninguém. A razão, enfim, a razão não nos entusiasma tanto.
Por isso é que Trump provavelmente e com os dados de hoje - “rectius”, as imagens de hoje (após o atentado de que foi vítima) – ganharia facilmente as eleições. Claro, Biden também tem contribuído, e muito, para isso. Mas, realmente, o punho cerrado e firme, erguido, por instinto, segundos depois de ter uma bala a perpassar-lhe a orelha é, na era da política-imagem ou política da mera narrativa, uma imagem avassaladora.
06 Outubro 2024
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