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A onda branca da fé

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

A onda branca da fé

Voz aos Escritores

2022-01-14 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Era comovente vê-lo, o desfile dos enfermos e dos que os acompanhavam, vestidos de branco, cadeiras de rodas, cabeças sem cabelos, crianças doentes no colo de mães de olhar perdido, uns coxeavam, outros arrastavam-se apoiados em muletas ou em braços de compaixão. Havia-os de todas as idades, todas as cores, todos os credos, de classe social média, alta ou baixa, de carteiras rasas, abastadas ou remediadas. A doença não é elitista nem racista. Os desfiles pelas ruas de Abadiânia, uma localidade no interior do Estado brasileiro de Goiás, começaram nos finais da década de setenta. Desde então, a onda branca da fé cresceu num marmoto de esperança desaguado em João Teixeira de Faria, o curandeiro João de Deus, the John of God na língua inglesa, quando a sua fama de milagreiro extravasou as fronteiras da Terra de Vera Cruz e se estendeu aos quatro cantos do Mundo.
João Faria diz que aos nove anos de idade a mediunidade mostrou-se-lhe numa clarividência de mártir. A primeira entidade que o visitou foi Dom Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. João era dado à mundanidade, ao forró e ao mulherio. Moço sem estudos nascido num Brasil de carências mil, onde a falta de assistência médica alimentava a gula insaciável da morte, João, na inata cobiça, vislumbrou nessa necessidade um filão, aliada às crenças ancestrais no xamanismo, espiritismo, vodu, candomblé e no catolicismo que fazem do Brasil um país de fé, crenças e devoções. Trabalhou no garimpo, foi raizeiro e garrafeiro. Engendrava mezinhas de plantas, engarrafava-as e viajava de cidade em cidade a apregoar e a feirar os prodigiosos elixires ou, para os raros descrentes, mixórdias de salsaparrilha, enquanto espalhava a sua semente de gente por onde passava emprenhando duas mancheias de cachopas que tropeçaram na sua lábia de curandeiro cobridor. Às panaceias juntaram-se as cirurgias psíquicas e as curas milagreiras. A fama crescente de benzedeiro fê-lo assentar em Abadiânia, onde erigiu o seu templo que baptizou de Casa de Dom Inácio de Loyola. A aldeola assistiu à progressiva avalanche de crentes em busca da cura e da salvação, multiplicaram-se as pousadas, as tascas, os restaurantes, os santeiros, as boticas, os táxis, os autocarros e as quitandas. João não cobrava pelas suas intervenções, apregoava-se um mero transmissor do poder curativo de Deus e das entidades, mas tirava comissões nos negócios que proliferavam por Abadiânia onde era rei e senhor, um soberano que ditava quem podia e quem não podia instalar-se na sua terra santa e ganhar a vida à custa da desgraça alheia. Também lucrava na venda da sua água mágica, nos comprimidos passiflora capazes de sarar todo o mal do corpo e da alma, nos terços e pagelas, nos livros que relatam os seus feitos do outro mundo insanáveis pela ciência, nos quartzos captadores das más energias, o mais caro dos quais foi vendido por cinquenta mil dólares a um paciente australiano que sofria de cancro no pâncreas. João farejava os donativos e os estalajadeiros espionavam os hóspedes à cata dos endinheirados, cujas prováveis posses relatavam à boca-pequena ao curandeiro ávido de engordar as suas contas milionárias.
A visita de políticos, chefes de estado, actores e apresentadores de renome como Oprah Winfrey, que em 2012 se deslocou à Casa de Dom Inácio de Loyola onde diz ter sentido um poder tão forte que quase a fez perder os sentidos, granjearam a João a apetecida popularidade internacional. Milhares afluíam por dia à sua casa na espera sofrida de recuperarem a saúde, a sua ou a dos mais amados. Do seu trono soberano, rodeado por imagens de santos e pelos acólitos que o secundavam nas rezas e encenações, que em braços levavam para as enfermarias os pacientes após as bárbaras e nada higiénicas intervenções cirúrgicas, perigosas até, João atentava às filas infindas na mira das raparigas bonitas a quem destinava o reincidente discurso, Minha filha, você é uma das escolhidas pelas entidades, você tem poderes mediúnicos, você pode salvar a sua mãe, ou o seu pai, ou o seu marido, ou o seu filho. Minha filha, vá ter comigo mais tarde ao meu gabinete, você vai ajudar na sua recuperação ou na de quem lhe é mais querido. No seu consultório privado, João usava-as, dava azo aos devaneios sexuais resgatadores da alegada cura. Muitas, por vergonha, calavam-se, ocultavam a humilhação, engoliam a devassidão. Outras falaram, foram ameaçadas, amedrontadas pelo poder além-fronteiras do curandeiro violador. Durante quarenta anos João violentou milhares de meninas e de mulheres e aproveitou-se da vulnerabilidade do ser humano na doença, na dor e no medo.
O silêncio quebrou-se. O feitiço também. As vozes de mais de 350 mulheres, incluindo a da sua filha Dalva Teixeira, molestada pelo pai desde os dez anos de idade, uniram-se num grito de acusação e de libertação.
Aos 78 anos, João Teixeira Faria foi condenado a 60 anos de prisão. As suas contas e bens foram arrestados. Para a consternação das vítimas, devido à pandemia do Covid 19, cumpre pena domiciliária com pulseira electrónica. Na Casa Dom Inácio de Loyola restam um punhado de acólitos fiéis à supremacia do Universo, crédulos de que a sua evocação ajudou a curar mais de dez milhões de desesperados que ali se deslocaram inundados de confiança. Nessa casa onde outrora afluíam marés brancas de fé, rasteja a espuma esbranquiçada dos escassos resilientes.
E nas ruas de Abadiânia, o pó jaz na terra seca de água e de gente, uma terra exaurida pela incurável ganância do homem, como assim ameaça ficar a restante terra da Terra, tema a abordar noutras crônicas vindouras.

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