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A língua portuguesa e a lusofonia são religiões?

Assim vai a política em Portugal

Ideias

2018-02-12 às 06h00

Moisés de Lemos Martins Moisés de Lemos Martins

A 20 de fevereiro de 1909, Tommaso Marinetti publicou o Manifesto Futurista no jornal francês Le Figaro. Em linguagem panfletária, Marinetti enunciou, premonitoriamente, a mobilização tecnológica da nossa época e as suas consequências para o modo de encararmos a cultura. A velocidade omnipresente. O automóvel de corrida como paradigma da nova beleza do mundo. A destruição dos museus, das bibliotecas, das academias. O rompimento com o passado. Com os professores, os arqueólogos, os cicerones, os antiquários. O fim da era literária. A realização do absoluto no presente. A pulverização das fronteiras do espaço e do tempo. A vida que se vive de um modo perigoso. A ação agressiva.

Para Marinetti, a literatura havia exaltado uma imobilidade pesarosa, o êxtase, o sono. Mas o que deveria exaltar era a ação agressiva, a insónia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco. E, depois, havia que acabar com a fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários, que enxameavam o mundo, e exaltar o novo assombro que nele germinava, a beleza da velocidade. De facto, um automóvel de corrida, com o motor embelezado por tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo, um automóvel rugidor, que parecia correr por cima da metralha, era mais bonito do que a Vitória de Samotrácia.
Em estilo panfletário, um tanto à maneira de Marinetti, Miguel Támen escreveu, a 8 de janeiro de 2016, um manifesto no Observador, increpando as políticas da língua. Como, aliás, já havia increpado a lusofonia, no Jornal i, a 24 de abril de 2013.

O que é que quer, ao certo, este professor de Literatura da Universidade de Lisboa? Que desapareçam todas as cátedras portuguesas pagas pelo governo português em universidades estrangeiras; todos os professores de português pagos pelo governo português, fora de Portugal; todas as regras sobre ortografia, e todas as tentativas grotescas de sugerir que por escreverem da mesma maneira as pessoas vão falar da mesma maneira. E acrescentou, numa pantomina final, acabe-se com o Instituto Camões, porque A melhor política da língua e a única decente é: nenhuma.

E, da mesma maneira, classificou como deplorável tudo o que invoque a lusofonia. Porque se trata de uma má ideia. Miguel Támen acha um disparate que as pessoas e os países possam estar unidos por uma mesma língua. Que é uma quimera imaginar a língua como um património. E não sendo um património, que necessidade existe em a defender? Nenhuma. Mas muito pior do que isso, para Miguel Támen a lusofonia é uma noção errada, porque corresponde, em Portugal, a uma espécie de colonialismo de esquerda. Depois de ter desaparecido o império colonial português, a lusofonia não passaria de um seu substituto espiritual. Substitui, hoje, as antigas palavras de fé, império e religião. A lusofonia decorreria da miragem de um excecionalismo português - esse excecionalismo, que imaginou a colonização portuguesa como um caso único na história da colonização europeia, imagina hoje os portugueses como um povo diferente de todos os outros.

Não concordo com estas opiniões sobre a língua e sobre a lusofonia. Não acho que tenha fundamento considerar a lusofonia como uma espécie de colonialismo de esquerda. Nem que a língua e a lusofonia estejam a ser tomadas por religiões. E penso que é despropositado considerar Portugal como um povo melhor que todos os outros. Interessam-me os assuntos da língua portuguesa e da lusofonia, porque a invocação de uma língua comum e de um espaço lusófono me parecem, sobretudo do ponto de vista estratégico, assuntos relevantes, tanto para Portugal, como para todos os países de língua portuguesa, assim como para as suas diásporas.
Em todos os tempos, as comunidades humanas viram-se confrontadas com duas questões fundamentais. Com o problema da ordem, na tentativa de dar resposta à exigência de viver em comunidade. E, também, com o problema da história, indagando sobre as possibilidades da ação humana. Nestes aspetos, a nossa época não é distinta de todas as outras. E o debate sobre a língua portuguesa e, por via dela, sobre a constituição de uma comunidade lusófona, considero-os modos de dar resposta, tanto à exigência de viver em comunidade, como às possibilidades da ação humana.

É certo que não podemos deixar de exercer um olhar reflexivo sobre os modos como interagimos uns com os outros no espaço lusófono. Mas o exercício de um olhar reflexivo concorre para a construção da grande comunidade de culturas que o espaço lusófono constitui. Ao falarmos do espaço lusófono, estamos a falar de comunidades que se exprimem na língua portuguesa, uma língua que por ser de culturas, pensamento e conhecimento, também concorre para a construção de comunidades culturais, artísticas e científicas lusófonas.
As comunidades culturais, artísticas e científicas do espaço lusófono têm esta responsabilidade de concorrer para a construção da comunidade lusófona, fazendo obra de cultura, de pensamento e de conhecimento - uma responsabilidade que é, ao mesmo tempo, estratégica, política, cívica, cultural e científica.

As expressões maiores do espírito humano apenas podem ser realizadas na língua materna. E entre as expressões maiores do espírito estão o pensamento, a cultura e o conhecimento.
Sou pessoalmente sensível, por razões profissionais, ao debate sobre as políticas científicas e sobre os modos de contrariar o modelo hegemónico de fazer ciência, um modelo que nos apaga, tanto pela língua de uso, o inglês, como pelo paradigma científico que nos impõe, o anglo-saxónico. Trata-se, sem dúvida, de uma questão estratégica. Uma língua que não se esforce para dizer os avanços do seu tempo, e também as suas contradições e inquietações, uma língua que não se esforce para dizer os bloqueios e os impasses da sua época, quero dizer, uma língua que não tenha pensamento, é uma língua que não cria conhecimento. E se o não fizer, se não criar conhecimento, é uma língua arcaica, que estiola e acaba por morrer.

Realizar esta tarefa, de fazer ciência em língua portuguesa, em todos os países que a falam, e também nas suas diásporas, é estar a dar oportunidades ao conhecimento, que se exprime na diversidade das culturas faladas em português, assim concorrendo para a construção de uma comunidade científica lusófona, policentrada e polifacetada, uma comunidade com sentido humano, que é sempre uma comunidade com o sentido do debate e da cooperação, no respeito pela diversidade e pela diferença entre as culturas.

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