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A importância da palavra no retalho

Ettore Scola e a ferrovia portuguesa

A importância da palavra no retalho

Escreve quem sabe

2021-02-01 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

Ao longo da minha vida de comprador, fui-me apercebendo da importância de um determinado tipo de conhecimento, de um determinado tipo de literacia, que implica palavras e expressões usadas para persuadir-me a comprar. A persuasão, esse extraordinário mecanismo psicológico, apresenta-se de forma implícita como uma estratégia de comunicação que visa mover as minhas emoções, inocular-me simbologias, tendo em vista a “imposição” de ideias que me conduzam à compra irreversível. Tais estratégias são, por vezes, altamente sinestésicas, acionando à vez ou em conjunto fatores que usam todos os sentidos: visão (forma de exposição dos produtos), cheiros, sons específicos (músicas), toda uma plêiade suscetível de “obrigar” à compra. Acresce a tais estratégias a da persuasão pela palavra, a mais subtil, e aprendi já eu à minha custa, a mais eficaz.

Compreendo agora por que razão os “copywriters” são redatores muitíssimo bem pagos. Sendo especialistas da palavra, são, simultaneamente, especialistas das emoções, sabem quando identificar problemas, como descrevê-los e como agitá-los na cara do comprador tendo em vista “a” solução procurada pelo comprador. O objetivo é simples: captar a atenção, suscitar o interesse, acionar o desejo e levar à ação pretendida, a da compra.
No âmbito geral, e não se discutindo o grau de impacto em cada género, palavras como “descontos”, “saldos”, “promoções” ou “rebaixas” são de tal modo persuasivas que mobilizam a atenção de alguém durante largo tempo. Com efeito, todos assistimos, em tempos normais, a algumas invasões em lojas renomadas, em busca da peça da moda a preços acessíveis. A procura da pechincha transforma-se, em determinadas épocas, num ritual que satisfaz o ego, as emoções, de certas pessoas. Sabendo isto, joga-se, nas lojas, com a amplitude dos descontos, que atingem, por vezes, valores não despiciendos. Quem não gostaria de comprar aquele vestido com 75% de desconto? Não se problematiza, geralmente, a veracidade do valor.

Nos hipermercados, valoriza-se o amigo do ambiente, o “ecofriendly”, e palavras ou expressões como “integral”, “light”, “sem açúcar” e “sem glúten”, “sem corantes nem conservantes”, bem como “frango do campo” ou “peixe do mar” (contraposto a “peixe de aquacultura”), ganham asas significativas e força persuasiva. A etiqueta BIO, aplicada a um enorme rol de produtos, atribui-lhes pretensos valores que se traduzem em preços dificilmente explicáveis, mas reais. Na grande área vinícola, sobressaem as expressões mágicas “reservado”, “reserva”, “grande reservas” ou “vintage”, e os preços saltitam em conformidade. Paralelamente, a enologia transforma-se em ciência popular e todos pretendem apresentar-se como especialistas de marca.

“Verde” e “”elétrico” são palavras mágicas e mobilizadoras nas energias renováveis. Viver num mundo verde e possuir um Tesla-S movido a eletricidade é o sonho real de qualquer terráqueo evoluído que se preze. Vestir roupa sustentável (cf. “join life”, da Zara), orgânica, elaborada com fibras naturais, é desejo acumulado nas nossas mentes, cumprido numa “black Friday” instituída inteligentemente num Carnaval qualquer. O importante, pensam os “copywriters”, é garantir que a mensagem e a simbologia passem e se fixem na mente do comprador. A mensagem não é biodegradável, mas funciona como tal, depois de cumprida a função.
No fundo, o consumidor quer é solução para o seu problema. Que alguém, através da palavra, procure conduzir o seu comportamento e simultaneamente queira resolver o problema mostra, sem sombra de dúvida, a força da linguagem, da palavra e do códigos linguístico. Mas, também, a força da simbologia e da mente. Percebe-se, assim, por que razão certas pessoas se viciam na compra de produtos que, em circunstâncias normais, não lhes fariam falta absolutamente nenhuma.
Recusar 75% de descontos não é, decididamente, para todos.

*com JMS

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