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A Ilha das Crianças Desaparecidas

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

A Ilha das Crianças Desaparecidas

Voz aos Escritores

2019-10-18 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Envergonho-me do que calei. Era enfermeira na Ilha Terceira, um pedaço de terra ancorado no Atlântico onde Deus fora pródigo na Natureza e avaro nos destinos dos açorianos, um pedaço de terra estratégico, cobiçado, invadido pelos Norte-Americanos que lá aterravam nos seus pássaros de ferro, aves de buchos cheios de tesouros nunca antes vistos, riquezas que escancaravam as bocas do povo, bocas abertas de fome, bocas abertas de espanto, bocas escuras, parcas de verbo e de marfim.
Catraios maltrapilhos ladeavam os caminhos percorridos pelos jipes Norte-Americanos, meninos de roupas remendadas, camisas surradas, pés rapados na terra enterrados sem raízes brotarem, deditos no ar erguidos em V a acenar, a acenar, bocas a salivar, no olhar o brilho do esfomeado que a fome está prestes a enganar. Os jipes a parar, os meninos de deditos lambuzados de “nicas”, as boquitas ruminantes de “gamas”, os chocolates “Snickers” e as “chewing gums” ofertados pelos militares Norte-Americanos, somente Americanos para os açorianos esquecidos do Norte, como do Norte da vida.
Catraios maltrapilhos e mulheres esfarrapadas catavam as lixeiras dos Norte-Americanos, o desperdício do rico a matar a fome do pobre, o pobre que olhava as casas dos afortunados por entre as grades da cor da ilha, as grades que separavam os dois mundos, mundos tão desiguais, o mundo de dez quilómetros quadrados da Base Aérea nº4, a Base das Lages, a Base dos Norte-Americanos, os condomínios “Beira-Mar” e “Nascer o Sol”, que ironia o Sol nascer para todos, as casas pintadas de amarelo-torrado, num tom dourado, que ironia esse “El Dorado”.
Envergonho-me do que calei. Os militares destacados traziam as famílias, mulheres bem-vestidas, cabelos arranjados, sorrisos “Pepsodent” nos rostos maquilhados, crianças felizes, imaculadas, a correrem nos relvados, a pedalarem bicicletas, a brincarem nos parques infantis, a irem de batinha para a escola da Base, a deliciarem-se de sandes de manteiga de amendoim e de Coca-Cola. Casais exemplares confraternizavam nos campos de golfe e de basebol, nos churrascos das casas douradas, vivendas de dois andares, espaçosas, alcatifadas, salas de decoração moderna, cozinhas de electrodomésticos apetrechadas, confortos vindos dos armazéns da Base. Os hábitos dos Estados Unidos da América na Terceira mantidos.
Envergonho-me do que calei. Bairros de lata vizinhos da Base. As gentes das outras ilhas do arquipélago a farejarem trabalho no “El Dorado”. Alguns conseguiam-no, mas a procura superava a oferta. A penúria engolia o lado sombrio da ilha. No hospital da Praia da Vitória atendia as parturientes, mulheres soçobradas de tanta vida carregarem, de tanta vida amargurarem, mulheres tristes, desgastadas, nas caras as levadas da desdita marcadas, dois filhos nos braços, um no bucho, outros tantos debaixo da terra, outros tantos ao Deus dará, a minha colega a perguntar-lhes, Quantos filhos pariu, vossemecê, Vinte e quatro, E vossemecê, Vinte e um, E vossemecê, Tantos quantas as lágrimas que verto, senhora enfermeira. A minha colega a sussurrar, Não quer dar esta linda menina a uma americana rica? A minha colega a argumentar, Não lhe vai faltar nada, à pequena, e vossemecê ainda recebe algum para matar a fome do rancho de fedelhos que lá tem no barraco. As mulheres assentiam, enroladas nos lençóis ensanguentados, amortalhadas na culpa, enoveladas no remorso, no silêncio da sofrida gratidão à enfermeira, às americanas beneméritas que dariam aos filhos recém-nascidos um auspicioso porvir, que dariam aos filhos tudo o que elas jamais poderiam dar, os filhos cujo amor penhoravam e o sonho americano proporcionavam.
Quanto vale uma criança? Um frigorífico? Um fogão? Cinco mil dólares? Uma alma caridosa?
Envergonho-me do que calei. Mães solteiras, Mães casadas, Mães viúvas, Mães enganadas. Mães que se finaram nos partos. Mulheres que morriam a dar vida. Homens que deixavam os filhos nos orfanatos. Trabalhadores açorianos que laboravam na Base das Lages. Tantos que diligenciaram a entrega das crianças aos Norte-Americanos, homens e mulheres submersos na iliteracia, no embuste, na carestia. O transporte rumo aos Estados Unidos nos aviões militares facilitava as transações. As crianças desapareciam nos meandros da miséria humana. As crianças sumiam nas brumas do tempo. Meninos e meninas desterrados. Meninos e meninas dos pais e dos irmãos apartados.
Envergonho-me do que calei. Diante de tanta pobreza o que poderia dizer? O que poderia fazer? O mundo dourado dos Norte-Americanos prometia prósperas vidas àqueles meninos. O brilho ofusca e nem tudo o que reluz é ouro. Agora, passados tantos anos, graças à Internet e ao empenho altruísta de um polícia com asas de anjo que promove o reencontro dos familiares outrora afastados, sabemos que para alguns desses meninos a vida foi madrasta. Para outros foi risonha. A roleta da sorte é matreira e nem sempre justa.
Os fantasmas da perda e da separação continuarão a ensombrar as existências de muitos. O estigma do abandono e o desconhecimento do paradeiro dos familiares também.
Envergonho-me do que calei. Não mais me silenciarei. Canto, de voz dolorida, o poema dum irmão açoriano que na Terceira ficou e a saudade não matou:
“É para ti, minha irmã querida, que por aí andas à solta, fazes parte da nossa vida, quando quiseres vir, volta”.

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