A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2018-06-22 às 06h00
De todos os verbos relativos à visão, entre os quais se destacam o ver e o olhar, há um que me preenche os olhos de profunda admiração e de sublime encantamento. Refiro-me ao verbo contemplar, cuja raiz nos remete para o templum, lugar dos auspícios ou da adoração. Encantar-se no templo natural que é a natureza, mergulhar religiosamente no âmago das coisas e dos seres, deve transformar-se em rito salvador. Tenho feito isso nestes últimos tempos e apetece-me deixar neste texto um registo para a minha posteridade. Encantei-me, na Holanda, com um maravilhoso campo de túlipas, de variegadas cores, cuja geometria me remeteu imediatamente para as figurações de Mondrian. A geometria, a cor e o cheiro, em confluência com o coração do mundo, deixaram-me em fundo êxtase, que transportarei comigo até ao fim do tempo. Fascinado pelas flores, dei comigo, mais tarde, a admirar algumas dálias, multiformes e multicolores, com simetrias fractais de um rigor dificilmente explicável. Representações fractais do mesmo tipo aparecem em múltiplas situações da natureza e obrigam-nos a pensar numa pré-existência matemática, sintática, determinada por um arquiteto qualquer que, acredito eu, seja o nosso Deus. Um dia, fui do Pocinho até à Régua, num cruzeiro para ver os socalcos do Douro.
Sob ondulações embalantes e formas geométricas de arrepiar, pude verificar de que forma este Deus em que acreditamos autoriza os homens a retocar a natureza, pincelando-a com cores que ele próprio incentiva a inventar. Aquele equilíbrio coleante entre configurações de terra e rio, de sol sa- bendo a água e a mosto, deixou-me sem palavras. À noite, já em casa, pude assistir a um extraordinário eclipse lunar, fenómeno raro, mas que se repete certamente mil e mais vezes na eternidade de todo o universo. A disposição das estrelas, a identificação de algumas constelações, a oportunidade de levar o meu olhar, a minha contemplação, para além da minha compreensão, transformaram um dia banal da minha existência numa aquisição emocional, religiosa mesmo, difícil de igualar.
Penso em quadros belíssimos que figuram realidades que nunca vi ou senti, pores-do-sol expostos em telas maravilhosas, faces de olhos azuis imaculados ou de sulcos que a vida lavrou, penso em tudo, no real e no figurado, e em mim, no que me constitui como ser humano integral, e concluo que tudo tem uma estrutura, que a natureza se organiza sob regras relativas a cada elemento, ao conjunto de elementos e ao grande conjunto dentro do qual tais regras funcionam, e que, no fim, tudo tem significado. A síntese semântica, o sentido da própria vida, mostra-nos a gramática das coisas, que começa na sua morfologia, na sua denominação, na sua relação estrutural com as outras coisas e termina no sentido que tudo tem para nós. Inscrito neste universo, sentindo-o, figurando-o desde a sua origem, o ser humano nasce, ele também, com uma gramática universal, órgão natural, biológico, corpo estrutural em que as coisas, o nome das coisas, regras naturais, qualidades, estados e ações se explicitam e desenvolvem.
Ouvir a forma como uma criança fala do mundo, do seu mundo, como denomina as coisas e lhes atribui qualidades em sintagmas de dificuldade progressiva, acionando a sua gramática, as estruturas, as regras analógicas, a enciclopédia léxica, progressivamente mais complexa, organizando uma semântica própria donde fluem sentidos extraordinários, é algo maravilhoso e que inebria quem a rodeia. Um dia, pela escolarização, ganhará consciência de uma gramática complementar, codificada, feita de grafias, de acentos e de pontuações, e sentirá a força das normas e dos preconceitos. E saberá que a gramática da língua, a das regras e das imposições, é mais complexa do que a gramática das coisas, da pintura, da música, da arquitetura e de outras realidades mais. Talvez um dia, com a sua gramática, queira falar da gramática das coisas, das estrelas do céu, dos campos de flores e das próprias flores, dos socalcos e dos rios, das emoções e dos sentimentos que a percorrem… Experimentará, então, êxtases nunca antes experimentados. Eventualmente, descobrirá essências, religiosidades, e escreverá sobre isso poemas profundos e sentidos. Identificará, nesse exato momento, a gramática do poema, e concluirá sobre a distância desta relativamente às suas outras gramá- ticas, incluindo a do amor. Porque o amor também tem uma gramática. E que gramática, meu Deus, e que gramática!...
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