Bibliotecas de Leitura Pública com rosto
Voz aos Escritores
2023-02-03 às 06h00
A galinha ainda fala de choca, disse, sapiente, a Dona Conceição. Fixei-me no verbo, que tem, pelo menos pensava eu, um traço semântico humano. Ainda tropecei no papagaio e na sua irmã arara, no corvo e no gaio, os quais, bem oleados, são capazes de projetar, em som bem estridente, um "vai prò caralho" especial. E não estou a mentir, pois ouvi a célebre imprecação num restaurante de truz, saída das goelas do papagaio Mitra, bem escondido no seu alto pedestal. Que o galo cocorica e a galinha cacareja já eu sabia, pois todos os dias os oiço desde as cinco da matina, que eu levanto-me sempre com as galinhas. Mas não sabia que estas, por vezes, falam de chocas, que parece ser um tipo de fala intermédia característica da ave pedrês lá do burgo em época de posturas abundantes. Sinceramente, eu nem devia estar admirado com este facto, pois se a galinha fala, também, por vezes, o homem canta (de galo!), e se o faz por alguma razão será. Admito, por exemplo, que a lei da imitação funcione muito bem nestes casos, e talvez seja por isso que o vizinho aqui do lado passa horas e horas a estudar, digo eu, o comportamento do imperador do meu capoeiro. Cá para nós, que ninguém nos ouve, a Gertrudes, sua mulher, bem precisa que lhe cantem de galo, que a mulher é aborrecida e peituda pra caraças. E fala pelos cotovelos, que é uma forma de falar com boca e sem ela, em demasias sonoras e gestuais difíceis de interromper.
É interessante que fale pelos cotovelos, mas que não fale com as mãos. Há nestas lides professorais e linguísticas quem fale efetivamente com as mãos, quem as bascule acima-abaixo e torça com os dedos bem entrançados, acompanhando as palavras com sorrisos e meneios de cabeça. Falar com as mãos é uma técnica estudada e refinada que mergulha, até, na movimentação proxémica. O que não acontece, convenhamos, com a fala cotovelar, toda força e rio transbordante. Às vezes nota-se que a Gertrudes fala para dentro, em resmunguices prestes a estourar, mas retrai-se quase sempre, que o galo seu homem canta grosso e não é para brincadeiras. Já imaginaram um galo deste tipo a cantar fino, tipo quiquiriquiqui, em vez do másculo lusitano, todo cocorococó? A Gertrudes dava-lha cabo das penas em duas penadas, ai dava, dava! Não.
O homem da Gertrudes não é lá muito falaz, ao contrário dela, faladeira que até queima o rastilho. Só há uma situação em que a pragmática muda o decurso das coisas e põe um objeto a ultrapassar a velocidade do feminino som falaz: a nota, sim, a nota, seja de dez, de vinte ou de cinquenta, e conto só até aqui porque a Gertrudes nunca viu uma de cem. E se não acredita, caro leitor, eu afianço-lhe que esta menina sabe-a toda, e até sabe que o dinheiro fala sempre mais alto. Não sei se tem aprendido com uns marmanjos que andam por aí a esgravatar o mealheiro dos outros, mas a verdade é que ela amouxa no final do mês ou quando o galo surge abanando prazenteiro um casaco de vison. Aí ela cacareja, baixa a crista, e até arrulha uns sons muito próximos do acasalamento. Já aconteceu ouvir-lhe o falar de choca sugerido pela Dona Conceição. Pelo menos pareceu-me, mas não vou ser eu a fazer-lhe a célebre e indelicada pergunta.
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