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A fome que provocou a revolta em Braga

Sustentabilidade I

A fome que provocou a revolta em Braga

Ideias

2022-05-29 às 06h00

Joaquim da Silva Gomes Joaquim da Silva Gomes

Nos últimos três meses o mundo tem assistido, quase atónito, a um conjunto de acontecimentos que poucos ousavam ser possível no século XXI marcado, pensávamos nós, pelos valores da liberdade, da democracia e do progresso geral da sociedade.
O conflito na Ucrânia veio alertar o mundo para um rumo que poucos conseguirão perspetivar onde, quando e como irá terminar.
São rápidas e preocupantes as mudanças que estão a ocorrer, quer na geografia dos países, quer nas consequências que uma guerra provoca.
Nas últimas semanas, o manto terrível da fome tornou-se uma preocupação quase global, devido aos milhões de toneladas de cereais retidos em armazéns ucranianos devido à guerra!

A fome, a pandemia e a guerra formam uma trilogia negra bem própria de outros séculos, como o do XIV ou do XX. Assim, recordarei brevemente o terrível ano de 1916, que atingiu em pleno o nosso país e a nossa região.
Nesse ano, em plena Guerra Mundial, a falta de alimentos básicos, especialmente o milho, generalizou-se e tornou-se o centro das preocupações das famílias. A miséria grassava em Braga e, logo em janeiro desse ano, circulavam pelas ruas de Braga muitas pessoas, especialmente crianças e rapazes.
No dia 29 de janeiro de 1916 o “Commercio do Minho” traz um relato negro do que se passava nas principais ruas de Braga: “Percorremos essas ruas, a qualquer hora, e a miséria, a desgraça assalta-nos sempre, mostrando-nos os seus horrores… contemplando esse quadro que nos revela a tragédia da fome!”.

A qualquer hora do dia ou da noite via-se “uma multidão de rapazes, semi-nus, tiritando de frio, de faces onde a fome se retrata visivelmente, vagueando sem rumo, sem a menor noção do que seja o trabalho, hoje seres que a desgraça atirou à via publica, amanhã talvez criminosos do roubo levará para a algidez do carcere!”. Esta realidade que se vivia em Braga causava arrepios a quem a ela assistia: “confrange-se-nos a alma quando na mente se nos desenha o seu futuro; o coração goteja-nos sangue quando pensamos no abandono a que os lançaram”.
Esta miséria estava associada à grave escassez de alimentos básicos. Estes, nomeadamente o milho, ou não existiam para venda, ou eram vendidos a preços insuportáveis à generalidade das famílias. Assim, os relatos que nos chegam da altura são clarificadores desta miséria.

Um episódio verdadeiramente caricato e ilustrador do ambiente de fome generalizado no Minho, neste caso em Ponte de Lima, encontra-se descrito no ‘Commercio do Minho’, de 1 de junho de 1916: “Hontem, ao fim da tarde desciam o nosso rio, vindos de Ponte do Lima, onde foi dia de mercado, dois barcos carregados de saccos de milho que vários particulares d’esta cidade e de freguesias ruraes foram alli comprar.
Ao chegarem, porém, à freguezia de Passagem, o povo, avistando-os munindo-se de paus, pedras e instrumentos de lavoura, e em attitude hostil intimou os barqueiros a fazerem a atracação ao respectivo caes. Os barqueiros foram fazendo ouvidos de mercador, seguindo o seu caminho”. Contudo, nesse local, o rio é bem estreito e os barcos tinham necessariamente de passar muito próximo da terra. Nesse momento o “Piqueira”, que ia num dos barcos, resolveu atracar e saltar para terra, para convencer o povo de que não era correto assaltar o barco com o precioso milho. Mas a revolta popular era de tal ordem que, mal se aproximou de terra, o “Piqueira” recebeu de imediato uma sacholada no braço esquerdo, que logo o quebrou! De seguida, os populares assaltaram o barco, roubando todo o milho que transportava!

Posteriormente, soube-se que o milho que os barcos transportavam não eram para exportação, mas para servir os populares, também eles carentes, que o foram comprar a Ponte de Lima.
Também no dia 30 de maio de 1916 outro episódio caricato ocorreu. Desta vez foi em Cinfães e atingiu Manuel Ferreira, residente no lugar do Casal. Quando este percorria os caminhos em direção a sua casa, transportando 60 alqueires de milho, que havia comprado na freguesia de S. Cristóvão, ao chegar ao lugar de Venda Nova, a população saiu ao seu encontro, munida de sacholas e varapaus, roubando-lhe todo o milho que transportava. Logo depois soube-se que este homem tinha comprado este milho para alimentar a sua numerosa família!

Os relatos de miséria e de roubos eram permanentes. Nesse início de junho, na freguesia de S. Pedro de Oliveira, em Braga, os populares procuraram por toda a freguesia alguém que vendesse milho. Como não encontraram em qualquer casa a mais pequena quantidade, resolveram então formar rondas, todas as noites, para impedir que algum lavrador vendesse o milho para fora da freguesia!
Também na freguesia de Tadim (Braga), na sexta-feira, dia 9 de junho de 1916, reuniu-se uma enorme quantidade de populares, para compelir um proprietário a vender cinco carros de milho, a retalho, pois o mesmo era necessário na freguesia. A agitação foi de tal forma assustadora que para ali foi deslocada uma força da guarda republicana para acalmar a população! Um dos mais caricatos casos ocorreu no dia 29 de maio de 1916, uma segunda-feira, da parte de tarde, junto à estação de caminhos de ferro de Braga.

Perante a fome que se alastrava, vários populares de freguesias como Padim da Graça, Parada de Tibães e Mire de Tibães, deslocaram-se para o Governo Civil de Braga, com o objetivo de protestar junto ao representante do Governo no distrito de Braga, devido à escassez de cereais, especialmente o milho.
Perante a multidão de pessoas esfomeadas, e receando que estas se dirigissem para a estação dos caminhos de ferro de Braga, onde estava um armazém com alguma quantidade de milho, as forças militares do Regimento de Infantaria e de Cavalaria de Braga rapidamente foram chamadas a guardar o edifício, gerando-se então momentos de tensão.
Posteriormente verificou-se que a multidão de esfomeados se dirigia na realidade para o Governo Civil de Braga!

O milho era na realidade o elemento primordial da alimentação na altura. Muitos padeiros tentavam pagar a preços mais elevados do que o tabelado, mas mesmo assim não o conseguiam para confecionar o tão apetecido pão!
O Governo, com a escassa margem de manobra que tinha, ainda tentou atenuar a falta de milho, importando aveia de Moçambique e de Angola. Mas a fome era geral e o sofrimento dos portugueses, e dos bracarenses, manteve-se durante todo o ano de 1916 e 1917, carência que foi sendo levemente amainada após o final da Guerra Mundial.

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