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A Ditadura de Um Vírus

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

A Ditadura de Um Vírus

Voz aos Escritores

2020-03-06 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Sou o Coronavírus, faço parte duma dinastia de vírus, sou coroado e o meu reinado tem tomado proporções mundiais, o meu poder é imenso, equiparável ao dos grandes imperadores da História. Até me nomearam Covid Dezanove, como aos reis, papas e rainhas, à imagem, por exemplo, de Dom João V de Portugal e do Império Lusitano, Dom João V o Magnânimo. Sou um ditador elevado pela publicidade, um déspota erigido pela ciência sombria que é a Economia, essa ciência que estrutura o Mundo e faz mover a Terra por mecanismos ocultos, inacessíveis, incompreensíveis ao comum dos mortais.
Como ditador que se preze domino pelo temor, fomento o medo que enubla a razão e a ansiedade colectiva, a perturbação social, imponho quarentenas a vilas e cidades, desmarco eventos públicos, acontecimentos culturais e desportivos, viagens de recreio e de negócios, estremeço economias, as grandes crises financeiras e as ditaduras começam com aparentes insignificâncias, baratas que se transformam em exércitos, provoco o desemprego, abalo os sistemas de saúde, aproveito-me das suas fragilidades nos países onde o sistema é débil ou elitista. Incremento o ostracismo: o doente por mim infectado é alvo a ser evitado. Um ditador abomina a fraqueza, o Homem morre de medo do contágio e eu alimento-me desse apanágio.

Como ditador que se preze ando insuflado pelo protagonismo que o Mundo me tem dado. Sou mais falado do que o cancro, malefício que dizima milhões de seres humanos num sofrimento arrastado; sou mais falado do que o monopólio mafioso dos tratamentos já descobertos pelos grandes laboratórios farmacêuticos que não querem curar doentes, empresas que delongam o sofrimento, um morto não é cliente, milhões de mortos não contribuem para o engordar obeso da economia dos medicamentos, a doença dá dinheiro, a morte é ladra de freguesia e a Organização Mundial de Saúde é passiva diante desta supremacia; sou mais falado do que a gripe, uma doença corriqueira à minha beira, mas que ceifa milhões de vidas, como o sarampo, que se empanturra de seres humanos em África, comezaina à qual a Organização Mundial de Saúde fecha a boca num mutismo criticável, calando as exigências aos estados membros para que enviem as vacinas que evitem esse genocídio silencioso de laivos racistas; sou mais falado do que as doenças crónicas, profícuas nos lucros, doenças que incapacitam os enfermos, crianças, homens e mulheres a sobreviverem na humilhação da dependência alheia; sou mais falado do que a fome, cúmplice da morte que traga milhões de inocentes, enquanto numa diabólica ironia toneladas de comida são atiradas ao lixo nos países ocidentais; sou mais falado do que a problemática do envelhecimento populacional desses países, um porvir pantagruélico nos buchos da insaciável indústria farmacêutica, os velhos emborcam paletes de blisters, exigem assíduos cuidados médicos, quem deles tratará se a natalidade decresce a cada ano?; sou mais falado do que as guerras e os padecentes das hecatombes, gente que morre aos magotes, a digladiar-se por mil causas desde que o Homem é Homem. Não há História sem guerras.

Como ditador que se preze ando nas bocas do Mundo, abro telejornais, destaco-me nas manchetes dos jornais, programas de rádio, debates, frentes-a-frentes, notícias que esmiúçam até à exaustão a situação dos infectados num doentio sensacionalismo que me aponta as luzes da ribalta; sou uma estrela nas redes-sociais, a comunicação da desinformação, das fake news, um lugar onde todos têm opinião, mesmo que a opinião não tenha fundamentação, um lugar onde o alarmismo atinge proporções pandémicas, quiçá infundadas, mas eu gosto, um ditador gosta que falem dele, quem não é falado não é lembrado, não é empoderado, até me comparam à peste bubónica do século XIV que dizimou um terço da população europeia e à gripe espanhola que nas primeiras décadas do século passado devastou milhões, não sou assim tão terrível, não me expando como essas epidemias, mas quero que acreditem na minha malignidade e que as notícias continuem a incentivar o pânico, a tolher o dia-a-dia de cada um, a desarrumar a pacatez das existências, a depauperar mercados, a periclitar economias, a roubar postos de trabalho.

Como ditador que se preze desfruto da glória, do pedestal em que me colocaram. Tudo começou na China. A minha reputação estendeu-se ao Mundo. Gosto de ser famoso. Temido. Propagandeado. Ando preocupado, algo me apoquenta a fama: suspeito que estou a ser usado. Um ditador abomina sentir-se manipulado.
Nos últimos quarenta anos a China cresceu graças aos países ocidentais aliciados pelo excesso populacional chinês, os salários miseráveis, à exploração laboral a que fechavam os olhos, olhos abertos aos baixos custos e aos altos lucros. Ignoravam que alimentavam um gigante. A China transformou-se numa potência que fabrica dezoito por cento do que se produz no Mundo. A China desenvolveu a tecnologia. A China tem capital e mão-de-obra qualificada. A China é uma ameaça económica. A Guerra Económica é a nova Guerra Fria. Nas guerras não se olha a meios e eu, o Coronavírus, sou uma arma apocalíptica arremessada à China, provando que uma guerra não se faz sem mortes.

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