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A Balada da Guerra

E a guerra continua...

A Balada da Guerra

Voz aos Escritores

2022-03-11 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Dez graus negativos, o frio gela os corpos, fere as peles, peles humanas massacradas de medo, trémulas, arrepiadas, os sons da guerra atordoam os corpos, ouço o soar arrastado do recolher obrigatório, sou jornalista de guerra, sigo a ordem sonora da sirene e abrigo-me, assim o fazem os meus colegas, assim o fazem milhões de ucranianos. Aqui as noites são brancas, brancas pela fuga do sono, brancas pela luz das explosões, brancas pela palidez mórbida das peles. A balada da guerra rouba o dormir e o descanso. Ouço os rebentamentos da artilharia, ouço o derrubar dos prédios, ouço o grito de vida da Mia, o grito inaugural da menina que nasceu no bunker nessa noite, a Mia a bichanar os primeiros sons da vida no colo entornado de lágrimas da sua Mãe, ouço a violinista recolhida no bunker a evocar a serenidade da voz dos anjos nos acordes ameigados das cordas do violino, Bach a calar o rugir maléfico da guerra, Bach a aquietar as almas acanhadas, salva de palmas a abafar os estrépitos dos tiros, a música a resgatar-nos da realidade, a música a relembrar-nos a sublimidade, Deus está aqui, na música, no milagre da vida, no choro da Mia, no silêncio que medeia cada estrondo, o Teu silêncio não se ouve, Senhor, escuta-nos as preces, nosso Pastor.
Atento as palavras soluçadas de outra Mãe ajoelhada na cadeira de rodas de uma idosa, Meu filho, meu filho, meu filho, tive de largar o meu filho, sozinho, tem onze anos, escrevi-lhe o número de telefone na mão, a tinta permanente como o amor dever ser, tive de metê-lo no comboio rumo a um país vizinho, o meu filho, sozinho, não posso deixar a minha Mãe inválida, não posso largá-la nos gritos da guerra, não posso, não posso, não posso, Senhor, protege-o, entrega-o em mãos caridosas, ainda há bondade no Mundo, tenho fé que ainda há bondade no Mundo, tenho fé em Ti. Ouço o desabafo de outra Mãe, Os meus três rapazes lutam contra o invasor, defendem a Terra Mãe, a terra que os tapará no cobertor da Morte. Quantas Mães amputadas de filhos, Senhor, quantas Mães Pietã? Ouço uma jovem a ler um conto, o embalar das palavras a serenar-nos a angústia, a fantasia dos parágrafos a iludir-nos a bélica verdade, E viveram felizes para sempre, Victória, Victória acabou a história e finar-se-á a guerra, Slava Ucrânia, Senhor, faz-me acreditar que há felicidade para além da mortandade, que há felicidade para além deste requiem, faz-me acreditar que a Paz vai voltar e os nossos homens, mulheres e crianças regressarão para nos abraçar.
Recordo o som do tiro que matou Anastasia, a voluntária de vinte e seis anos que alimentava os cães de um abrigo perto de Kiev, cães esfaimados há quatro dias, cães que uivam o prenúncio da Morte, Anastasia era um dos milhares de voluntários que se afadigam nas carências dos que sem nada ficam, desabrigados, desempregados, desnorteados. Nas barreiras de cruzes metálicas obsta-se a passagem ao invasor, toca-se a marcha nupcial, Sim, quero, diz o soldado armado à mulher de toucado de véu improvisado, que vivam felizes para sempre, para sempre é muito tempo, tempo que escasseia aos tombados pela Pátria em terra banhada de lágrimas e sangue. Na espera da Morte, na espera da agressão, soldados jogam às Damas com cocktails Molotov preparados pela aguerrida população, povo determinado em defender a terra berço do seu nascer, não passarão, não passarão, não passarão, Slava Ucrânia!
Lembro a cave do maior hospital pediátrico da Ucrânia, em Kiev, crianças doentes em camas improvisadas, crianças pela guerra estropiadas, pela guerra orfanadas, a menina loira de nove anos resgatada dos escombros que inumaram a Mãe, a menina loira que chama dia e noite pela Mãe que não voltará, o menino de dez anos saído do bloco operatório, órfão de Pai atingidos na fuga, médicos exaustos, enfermeiros exaustos, medicamentos, material médico, maquinaria, braços que ajudem, Precisamos, muito, precisamos. Os rostos das meninas e meninos assassinados em fotografias enormes estampados, a Morte agiganta-se ao abocanhar os de pequena idade, carinhas lindíssimas, olhos vivos, sorridentes, ninguém diria que estão mortos, Senhor, impossível estarem mortos, São anjos, sussurra uma voz, São anjos, ecoa outra voz, meninos e meninas do Senhor. Estão mortos, terrivelmente mortos! Rugidos de dor, brados de pavor, imagens do horror.
Em Lviv e noutros pontos fronteiriços amontoam-se mares de gente, mulheres, velhos, crianças, os homens para trás ficaram, outras mulheres também, homens e mulheres de pés enraizados na Terra Mãe, Slava Ucrânia, um mar de refugiados que quer debandar, resguardar-se da balada da guerra, do frio, da fome, da Morte, marés de gente a trilhar corredores pseudo humanitários, rotas de lágrimas, caminhos de passos emudecidos, calados pelo medo, o desalento, a impotência, o cansaço, a doença, a ânsia de sobrevivência, passos sufocados pelos clamores da guerra, marés de gente atónita diante da prepotência, da crueldade, da ganância, da inclemência dos governantes vizinhos. É a guerra, a sempiterna guerra, Senhor.
Movemos montanhas e rios, mas não mudamos a natureza humana. Slava Ucrânia! Heroiam Slava! Sim à Liberdade, sim à Democracia.E a balada da guerra prossegue, troando o silêncio de Deus.

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