Correio do Minho

Braga, sexta-feira

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40 anos

As férias e o seu benefício

40 anos

Escreve quem sabe

2022-10-28 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Acordei na certeza que jamais esqueceria o dia. No alto do quinto andar pude observar o trânsito da manhã. Estava descalço. Ao fundo, o rodopio habitual de um bairro caraterístico de Paris. Velhos e novos deambulavam por entre a brandura do vento. Não chovia. O céu estava retalhado por um cinzento giz. As folhas das árvores dançavam. Havia um cão que serpenteava atrelado por uma senhora de cabelo branco.
Vivia na rua Baudin. O número estampado no canto superior direito, ao lado do portão, tinha o ano do meu nascimento o que lhe conferia uma densa familiaridade. À volta, vozes da Argélia saídas dos mercados, as mesmas que tinham sido vergastadas, vinte anos antes, no massacre comandado por Maurice Papon, então chefe da polícia parisiense.
O amarelo torrado da pele denunciava quem vendia e quem comprava. No meio do novelo de frutas, legumes, vinhos, tecidos e tanto que por lá havia, ficou-me a melancolia do ovo Kinder, produto italiano lançado no ano em que nasci. Curiosa sina.
O carro foi amanhado ao limite. Trouxemos as malas cheias de conquista. Vitórias que provocaram choro, sacrifício e orgulho. O acessório, aquele que aconchegou a saudade, tantas vezes adquirido em sobressalto, foi oferecido a quem mais precisava. Argelinos, jugoslavos e marroquinos. Passado este largo tempo, ainda tenho em mim os abraços e as lágrimas que vi no último bater de porta. Gente protetora. Um relicário de história em cada um deles. Perdeu-se o contacto como se perdeu a névoa de Paris. Um elo que todos sabiam que iria diluir-se no estender do tempo.
Nunca olhei para trás. Ainda hoje evito esse instinto. Ninguém falava. Atolado por entre apetrechos, observava o conta-quilómetros do novo carro dos meus pais. A contagem começava e com ela o aproximar do país que escolhemos viver em corpo e alma. O silêncio era de ouro. Nunca houve tensão.
Até chegarmos à fronteira de Espanha, recordo a passagem pelo verde do bosque de Bolonha (Bois de Boulogne), o maior parque público da capital francesa. Pelo vidro do carro, observei a beleza das árvores, a imponência da natureza e recordei as tardes de domingo onde ia com a família passear e saborear os odores do piquenique, hábito que não segui. Convém dizer que estou a mencionar um espaço de lazer com mais de 800 hectares – superior, por exemplo, dos parques Central Park (Nova York) e Hyde Park (Londres) – à época lugar de culto para as famílias da emigração, longe do atual bordel a céu aberto.
Sem o fulgor das autoestradas, a viagem foi um livro permanente. Um desatar de memórias por entre a doçura da mãe e o pontual sorriso do pai. Não me lembro de uma paragem digna de recordar. Bem diferente, o cheiro que veio comigo. Aquele que só voltei a sentir, muito anos mais tarde, quando voltei a tatear os dedos no número 74.
Chegámos a um país que ainda vivia embriagado pela liberdade. Meses antes, tinha sido efetuada a primeira greve geral em Portugal, convocada pela CGTP. Ainda se falava da visita de João Paulo II (12 a 15 maio) que, no ano anterior, tinha sofrido um atentado em Roma. Era a primeira vez do papa polaco em Portugal, com passagens por Lisboa, Fátima, Vila Viçosa, Coimbra, Braga e Porto. Voltaria em 1991 e no ano 2000. Na música, Michael Jackson lançava Thriller, álbum mais vendido em toda a história, e os ABBA assinavam o último álbum de estúdio (The Visitors).
Na terra que ainda hoje me acolhe, dei de frente com telhados de colmo. As ruas estavam mascaradas com lama. Muito gado. A água e a luz não eram para todos. Poucos tinham televisão. As casas, na maioria, tinham paredes pintadas com o fumo saído das lareiras. Medas de centeio. Gadinho farto. Havia venda direta. As mulheres com capa de burel. Os homens com croça e sacho às costas. Galinhas e patos por entre cães e gatos. Forno do povo a bulir. Crianças em toda a esquina. Lameiros e nabais trabalhados. Leiras semeadas. Socos abertos e galochas. Um chiar permanente de carros de vacas. Burros, éguas e cavalos. Poucas casas desabitadas. Serões. Uma fárrea que cedo me enfeitiçou. Assim era o tremendo Barroso que encontrei em 1982. Faz esta semana 40 anos que cheguei.

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