Correio do Minho

Braga, sábado

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2020

As férias e o seu benefício

2020

Escreve quem sabe

2020-12-31 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

A capicua dava a este ano que hoje chega ao fim um mote prometedor. Abrimo-lo com a ilusão de colhermos meses de ceifa abundante. Uma espécie de relicário onde podíamos orar com a convicção de sermos o que quiséssemos neste início de década.
Porém, cedo o sussurro galgou fronteiras. Ao ouvido, alguém segredava que, lá longe, tinha surgido um vírus. Por ser longe, assobiámos para o lado. Não era nada connosco. Andámos assim praticamente todo o primeiro trimestre. Até que, de repente, tivemos que fechar o nosso ganha pão. Mais tarde, a nossa alma. Recolhemo-nos. Fechámo-nos. Fomos para a janela cantar. Batemos palmas. Fizemos o que há muito adiávamos. Voltámos a pintar. A falar com quem não tínhamos tempo. A reajustar os móveis da casa. A recuperar o que antes não tinha valor. A música passou a ser escutada como deve ser. Vimos que, com menos, somos iguais. As estradas deixaram de ter o escarro da manhã. O apito inclemente. A fúria do olhar. A impaciência do esbracejar.

Chegámos a meio do ano. O Sol voltava. O mar ondulava. O bicho passou a ter menos volume e, com isso, a ilusão de voltar a ter a cara destapada. As festas, apesar de adiadas, passaram a ser mascaradas em segredo. Alguém via e denunciava. O dedo anónimo pululava. O erro era observado, mas o Sol deste país à beira-mar plantado continuava. Assim nos mantivemos a pregar a sã consciência.
O tempo ia passando. Por entre os dedos, desfilavam as notícias. As mesmas. As incessantes. Aquelas que, depois do espanto, marinam. Até que começaram a tombar nomes invencíveis. Sim, cada um de nós ganha um repositório sagrado. Intocável. Demasiado belo para sair do palco das luzes.

Desde o primeiro em Portugal – Mário Veríssimo, massagista desportivo, a 16 de março – até aos últimos, muita lágrima brotou. Pelo Mundo, morreram nomes como o escritor chileno Luís Sepúlveda; arquitetos (Vittorio Gregotti, autor do Centro Cultural de Belém); dramaturgos (Terence McNally); atores (Nick Cordero, Jay Benedict, Andrew Jack, Mark Blum), cantores (Manu Dibango, lendário músico camaronês, Dave Greenfield, teclista dos Stranglers, Ellis Marsalis, descrito pela revista Billboard como «patriarca do jazz em New Orleans» e Mateus, da dupla brasileira Lucas & Mateus); compositores (Harold Budd, Dmitri Smirnov); artistas plásticos (Abraham Palatnik); cozinheiros (Floyd Cardoz); figuras da moda (Kenzo Takada, fundador da marca Kenzo); ilusionistas (Roy Horn, da dupla Siegfried & Roy); políticos (Giscard D'Estaing e Jerry Rawlings, antigos presidentes de França e Gana).

Sentimos que a família da televisão, ao virar gravura, também podia partir. De enxurrada, começámos a sentir na pele o odor. Poucos são os que passaram pelos pingos da chuva. Raro é aquele que não teve alguém infetado ou que não conheça a fatalidade.
O Outono chegou e com ele a saudade ganhou mais corpo. A vacina tardava em chegar. Muitos caíram como folhas. Entraram nos hospitais para saírem em quatro tábuas. Mulheres e filhos, homens e netos, amigos e conhecidos, ninguém via, muito menos tocava, quem amou ou gostou. Nunca a palavra funeral foi tão nada.

Só concebo viver com toque e cheiro. Tirarem isto à humanidade é suspender o viver. Agora que a vacina obteve luz – mérito ao trabalho relâmpago da ciência com o labor dos profissionais de saúde – oxalá o homem regresse à essência e valorize o tanto que tem. A ética, o saber estar, o saber ouvir, são trunfos que devem ser retirados da maior crise deste século.
Por paradoxo, este ano já está na galeria dos imortais. A história irá falar dele como um marco, a meu ver, de impotência humana. Os livros irão descrever a impreparação que o ser humano teve em todas as áreas, seja económica, cultural, turística, desportiva, política ou social. O invisível derrotou a prepotência e degolou a sobranceria.
Vive-se agora o Inverno. Que a vaga de frio traga a temperatura ideal para ultrapassar a maior lição de vida das últimas décadas. O homem tem nas mãos a solução para inverter o termómetro. Basta aplicar o bem. Estamos a passar a tormenta, dizem-nos. Vamos ter nova oportunidade. Queremos voltar a mostrar o sorriso. Abraçar. Beijar. Dizer tudo. Há que ter memória para que a máscara passe à história.

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