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Sentir, sinta quem lê

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Sentir, sinta quem lê

Voz aos Escritores

2019-02-15 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Há frases que cheiram como flores, disse uma poetisa francesa. Eu diria mais: há frases que mostram mais do que um quadro de Da Vinci, que sabem melhor do que um presunto Pata-Negra ou que uma valsa de Strauss, que acariciam mais do que um colo macio ou uns lábios de veludo. Imagino que quem escreve não pensará nestas coisas, mas, porque não o sentirá o leitor, se tiver o seu sentir em convulsão? Não foi Pessoa que disse que «sentir, sinta quem lê»? Como, afinal, se sente um poema? «Às vezes, ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido», disse paradoxalmente o nosso poeta, num dia em que ouviu passar o vento. É-nos, por vezes, sugerido, pela nossa própria mundividência, que o mundo é de quem não sente, de quem usa apenas a razão, e põe de lado a emoção, simbolizada pelo nosso coração. Envergonhamo-nos com a riqueza espúria de quem domina o mundo e deixa que a miséria e o sofrimento aconteçam. Perante isto, antes de nos perguntarmos como se sente, afinal, um poema, talvez seja mais relevante indagarmos como se sente a realidade, como cada um de nós usa os cinco sentidos, como constrói as suas emoções e como, consequentemente, atualiza os seus sentimentos.

Que faz o artista das grutas e dos rochedos senão exprimir a realidade objetiva em traços emotivos? Os traços quebrados do desenho infantil são os traços duma flor, e a flor, os traços na parede da gruta, são essência, são poesia. A poesia é essência, e é intemporal. Quando Píndaro diz que o homem é o sonho de uma sombra, quando Catulo se tortura por odiar e amar simultaneamente, ou, ainda, quando Safo compõe poesia para ser cantada ao som de uma lira, fazem-no pela consciência estética e pela pulsão emotiva. Dizer que o homem é o sonho de uma sombra significa atribuir à sombra a qualidade humana de sonhar, e tal atribuição cabe no pensamento poético. Compor poesia e acompanhá-la com música significa ter consciência estética universal. Torturar-se, poeticamente, por amar e odiar ao mesmo tempo, significa ter consciência do sentir. E estes três poetas da antiguidade já sentiam como nós, ou talvez mais profundamente, porque as emoções e a essência poética já estavam lá e em estado mais puro.

Muitos séculos mais tarde, esclarece-nos Petrarca a diferença que existe entre a razão e a emoção. Em primeiro lugar, a razão não tem lugar onde domina a paixão, e isto porque a razão fala, mas a emoção, o sentimento, fere. Nada de novo, apenas o reconhecimento do que é profundamente humano em época de elevação teológica. Camões vai no mesmo sentido quando diz que «Sempre a Razão vencida foi de Amor». E este tem uma origem, ou uma fonte, que pode ser Natércia ou Dinamene, a natureza ou Deus. Ao expor o verde dos campos, verde da cor do limão, e ao transpor para o seu interior uma visão amorosa da realidade, o poeta põe em relevo um princípio fundamental de toda a composição poética: a realidade, tendo em si essência, é a origem do poema.

Comparar o fogo que ardia na cera ao fogo do desejo, pela visão do rosto da amada, ou mostrar-nos uma Leonor insegura junto da fonte, evidencia um processo em que o sentir se transporta do lugar físico para o lugar poético. Imbuído de emoção pela visão da realidade, ou pela sublimação subsequente dessa mesma visão, o poeta pode então percorrer o caminho intelectual da figuração. No caso de Camões, porque atribui ao amor o estatuto de sentimento supremo, teremos o entendimento dos seus versos em função do amor que houver no nosso coração. Porque, às vezes, há dias em que temos na alma (ou no coração, se quisermos) um não sei quê, que nasce não sabemos onde, que vem não sabemos como e que dói sem sabermos porquê. Tal sentimento de amor, sendo profundo e verdadeiro, conduz-nos à apropriação emotiva da pessoa amada.

Em vários lugares, diz-nos Pessoa, que sentir é pensar sem ideias, que ver lucidamente a realidade prejudica a ação de sentir, e que a verdadeira obra de arte só é possível com pouco sentimento. Quando nos diz que «quem sente muito, cala; quem quer dizer quanto sente, fica sem alma nem fala, fica só, inteiramente», talvez o diga como uma defesa psicológica. Ao afirmar, taxativamente, «sentir, sinta quem lê», anula a sua ação poética, emotiva, e transfere para o leitor a responsabilidade, ou a obrigatoriedade, de sentir.
Como se faz um poema no nosso coração? Com que ingredientes se escreve um poema? O que sente o poeta, quando cria o seu poema? O que sente o leitor ao ler um poema?
Eu sei o que sinto em todos estes passos. E você?

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