Correio do Minho

Braga, terça-feira

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Os rolos

A responsabilidade de todos

Conta o Leitor

2019-07-24 às 06h00

Escritor Escritor

Luiz Saragoça

Ao junho quente, como há muito tempo não se vira, sucedeu o julho abrasador. Todos os dias, o Pedrico, agora de férias escolares, montado na jumenta conduzia as vacas do avô para as pastagens do vale do Cerradico. Mal chegava, metia os ruminantes e a jerica no lameiro, trancava o boqueiro e partia para a descoberta e para a aventura.
Os amieiros e os salgueiros, serpenteando pelo fundo do vale, arrastavam as suas raízes pelo cascalho que se estendia pelo leito já seco e esventrado do ribeiro.
Os pássaros, porfiando, espalhavam melodias que, cada qual a mais bela, ecoavam pelo fragaredo que guardava as fraldas do vale profundo.
Numa manhã, com a cria entretida nas pastagens mais viçosas da lameira, embrenhou -se por entre a vegetação, espreitando para o interior das sebes e silvados, na ânsia de descortinar o ninho de algum passareco mais desmanzelado. Pé ante pé, espreitava aqui, olhava acolá, todos os freixos e olmos eram catados - canhota por canhota, ramo por ramo e folha por folha.
Mas, nada!

Já a manhã ia adiantada, quando se sentou nas pedras deslavadas do açude, agora seco, imaginando a água a despenhar-se no abismo e espraiar-se na cascalheira. Eis senão quando, um esvoaçar descoordenado denunciou uma fuga, apressada, por entre os amieiros.
Rodou o olhar para a direção do ruído e, de relance, viu o rabo de um passarão, que supôs ser de uma rola, esgueirar-se por entre as carrasqueiras que, escarranchadas na parede, guardavam o lameiro de olhares e bocas alheias.
Aproximou-se, pé ante pé, saltou a parede, meteu-se por baixo dos carrascudos ramos, qual filho por baixo dos saiotes da mãe, e indagou, com o olhar, todos os ramos, ramicos e folhas.
A rola tinha o ninho numa canhota, não muito alta, aconchegado e dissimulado entre a folhagem mais densa.

Sem grande canseira subiu a fraga, mesmo atrás da carrasqueira e, em bicos de pés, por entre a folhagem, com os olhos arregalados, desencantou uma pareilha de lindos ovos pousados no emaranhado de galhicos.
Satisfeito com o achado sorriu, e decidiu que o melhor era manter o bico calado!
Os rolos eram muito apreciados pela garotada e não só...! Não eram ariscos como os restantes pássaros, tinham um canto melodioso e a sua carne era muito solicitada. Rolos estufados no pote eram um regalo e numa arrozada uma maravilha gastronómica.

Vai daí, ao chegar ao povoado, enquanto a cria saciava a sede no tanque, o finório foi logo propor negócio ao taberneiro que, agarrado à bica, enchia a barrila da água.
- Tio Zé Maria, não quer comprar uma pareilha de rolos?
O taberneiro fitou o rapaz e, depois de um olhar desconfiado, perguntou:
- Onde estão?
- Ainda não os tenho, mas encontrei um nio com dois ovos. A rola já está a chocar e daqui por uns dias nascerão os rolos.
- Mas, já queres vender os rolos e ainda nem nasceram? – Inquiriu o taberneiro, intrigado.
- Se não os quer, vou vendê-los a outro…,- contrapôs o garoto, determinado.
Como a concorrência entre os taberneiros era do tamanho do povo, e na eminência de os rolos irem parar a outras mãos, o Zé Maria perguntou:
- Quanto queres por eles?
- Cinco crouas – respondeu o rapaz.

O taberneiro não se fez rogado e contrapôs:
- Dou-te agora uma croua de catraios e duas quando trouxeres os rolos.
Era um bom preço, mas o risco também era elevado!
O rapaz concordou com o negócio e acompanhou o taberneiro ao estabelecimento. Dez rebuçados foram atirados para o balcão.
O rapaz não perdeu tempo a meter os catraios ao bolso.
- Estes já cá moram e daqui por uns dias …, - pensou para os seus botões.

O garoto ia inspecionando o ninho, encarrapitando-se em cima da fraga, fingindo olhar para outras paragens, para que a rola não enjeitasse.
Viu os rolos passarem do pelo de cuco a canhotos e de canhotos a uma plumagem bem composta.
Os rolos ficavam inquietos quando viam o rapaz emplouricado na fraga, mas como não tinham asas para voar…, resignavam-se à sua sorte.

Passados alguns dias, numa rotineira visita, o impensável aconteceu! Os rolos tinham sumido e o ninho estava esventrado e oco.
Aflito, não acreditando no já observado, subiu a carrasqueira e, com o olhar pousado no ninho, confirmou o que os seus olhos já tinham visto.
- E agora? - Como devolvo os rebuçados? – Remordia-se para os seus adentros.
Desde então, o pequeno evitava a taberna do Zé Maria e sentia um arrepio sempre que avistava a sua sombra. Foram dias embaraçosos!
Mas, como o povo era pequeno, mais manhã, menos tarde, era inevitável o confronto.

No domingo seguinte, passava o Pedrico junto ao tanque quando o taberneiro, que já o tinha de espera, lhe apareceu, mesmo à sua frente, e interpelando-o:
- E então, os meus rolos?
O garoto ficou branco como a cera e, com a voz trémula, lá se foi desculpando.
- Sabe…, ainda têm pelo de cuco.
Os dias foram passando …
O comprador, já desconfiado das desculpas esfarrapadas, num dia que o tinha visto sair com a cria, ficou com ele de olho e mal o avistou:
- Então, os rolos já têm canhotos? – Perguntou, maliciosamente, o taberneiro.

O rapaz vendo-se descoberto e já sem desculpas para apresentar…, confessou que os rolos tinham sumido.
- E a croua de rebuçados que já te dei?
- Comi-os. - Respondeu o garoto, envergonhado.
- Agora tens de me pagar os rebuçados! - Contrapôs o taberneiro, apontando, com o indicador da mão direita, ameaçadoramente.
- Está bem, eu dou-lhe a croua. - Respondeu o garoto, balbuciando.
- Tem é que esperar algum tempo!
Os dias, os meses e os anos foram passando e nunca mais os rebuçados foram pagos.
Sempre que o Zé Maria e o Pedrico se encontravam, vinha à baila a história dos Rolos. O Pedrico oferecia a croua, mas sem vontade de a dar; e o Zé Maria recusava-a, mas com vontade de a receber.

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