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Braga, terça-feira

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O segredo

A responsabilidade de todos

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Conta o Leitor

2019-08-16 às 06h00

Escritor Escritor

Ana Maria Monteiro

A sorte de Joaquim foi aquele assalto. Não tivesse alguém assaltado a casa de Francisca e roubado o precioso mealheiro e nunca estaria prestes a celebrar os cinquenta anos de casados.
A verdade é que Joaquim desesperava por casar enquanto Francisca protelava indefinidamente porque entendia que eram ambos muito jovens e ela queria um enxoval primoroso (que dia após dia ia nascendo das suas mãos de fada), uma casa mobilada e um casamento abençoado, não só pelo padre mas também por um certo sentido místico de proteção. Por esse motivo (além do seu labor com os bordados e as rendas) estava disposta a juntar no mealheiro as mil moedas de tostão necessárias à compra da “colcha da felicidade” - e isso levava muito tempo.
Tendo regressado à estaca zero do seu mealheiro já tão adiantado, Francisca acedeu a casar sem comprar a colcha que só seria da felicidade e abençoada se fosse paga por mil moedas de tostão.
Mas impôs a Joaquim uma estranha condição: ela tinha um segredo, um segredo que guardaria por toda a vida e nunca lhe revelaria. Seria o seu único segredo para ele, mas levá-lo-ia consigo para o casamento. Joaquim aceitou, um pouco a contragosto.
Francisca acabou por compreender que essas crendices não tinham qualquer fundamento, uma vez que o seu casamento com Joaquim funcionava na perfeição sem necessidade de qualquer bênção exterior a ambos.
E dentro da compreensão desta verdade simples, Francisca foi iluminada pelo entendimento e percebeu que a felicidade seria tão mais fácil quão mais se comprometesse a assumir o destino como coisa sua e ir por onde a levasse a associação harmoniosa entre a razão e o coração. Esta constatação levou-a a querer mais. E foi assim que no início da década de setenta, casados quase de fresco, sedentos de viver e aprender, Francisca e Joaquim se mudaram para Lisboa, onde viveram como casal de classe média/baixa satisfeita, com empregos razoáveis que permitiam criar os filhos sem dificuldades e fazer férias em locais distantes. E foram felizes.
De vez em quando, Joaquim tentava que ela lhe revelasse o segredo, ele sabia que era algo sem qualquer importância e até por isso a sua curiosidade era maior, mas nada, Francisca sempre se recusava. Com os anos, o assunto foi sendo esquecido e a vida continuava como sempre.
Como sempre, até que…
A primeira vez que sucedeu foi assustador. Francisca deu por si no supermercado, sem saber como fora lá parar e, pior que tudo, não fazendo ideia de qual o caminho para regressar a casa. Telefonou ao marido pedindo-lhe que fosse ter com ela, ele percebeu algo de errado na sua voz e foi de imediato. Quando lá chegou já ela estava um pouco menos assustada e mais segura de si, embora ainda presa dum certo torpor.
Ao jantar falaram sobre o assunto. “Não vale a pena darmos excessiva importância a isto” - disse ela, “sei lá, deu-me uma branca, ou desta vez distraí-me demasiado”, sorriu, ambos sabiam como era distraída, “se voltar a suceder, prometo que vou a um neurologista”. Joaquim quis acreditar que ela tivesse razão, Francisca desejou profundamente que fosse isso mesmo, mas o bichinho do medo insinuava-se-lhe por cada poro, sabia que era possível.
E sucedeu mais vezes, muitas mais e cada vez piores. Enquanto as suas ligações neuronais se desligavam, Francisca ia criando outras, frágeis, de aprendizagem rápida, para conseguir viver com a doença sem que ninguém notasse. Bilhetinhos em sítios estratégicos onde saberia que iria mas ele não (seria difícil explicar o porquê daqueles recados), recordando-a de lavar os dentes, despir o pijama, mudar de roupa antes de sair e outras coisas assim; a morada de casa (e mais tarde também o seu próprio nome) bem à vista ao abrir a carteira, e-mails com alertas programados nos momentos bons, para lhe serem enviadas a certas horas de certos dias. Francisca fazia, não pensava, fazia; assim como na juventude (num passado muito distante) bordava e tecia na perfeição, assim agora montava a sua teia pelos fios sobre que se orientava e com que se enganava a si e a todos. Esta necessidade de negar a doença, como se dessa forma pudesse iludi-la e barrar-lhe a passagem, levava-a a comportar-se como um alcoólico ou outro viciado qualquer. Pode parecer estranho ou não, mas a verdade é que estas práticas lhe permitiram viver mais alguns anos numa seminormalidade suficiente para que Joaquim não se apercebesse do progresso da doença.
Francisca quase podia olhar-se no espelho e ver nele a doença piscando-lhe o olho com cumplicidade: “bom trabalho, continuamos a enganá-los a todos”.
Para Joaquim e os filhos, a descoberta da verdade foi dura e a doença já ia adiantada. Francisca perdera finalmente todos os ténues fios de contacto com a realidade e de nada lhe valiam os papeis que continuava a encontrar e as mensagens que recebia; mesmo quando conseguia ler não compreendia e os seus comportamentos descontrolaram-se ao mesmo ritmo que os seus subterfúgios iam sendo encontrados pela casa e pelas suas coisas em que antes ninguém pensara vasculhar.
Milagres acontecem.
Milagre é o nome genérico que damos a acontecimentos excecionais e que se supõem impossíveis, mas que acontecem, aqui aconteceu o improvável "canto do cisne".
Francisca morreu em casa, dias antes de perfazer os cinquenta anos de casada com Joaquim. Estavam sozinhos, ele sabia que o fim se aproximava e isso seria sobretudo um aconchego que finalmente viria para todos. Após a perda de controlo de Francisca sobre o seu eu, a progressão fora anormalmente rápida, mas profundamente dolorosa.
Foi no sossego dessa suave manhã de primavera que Francisca abriu os olhos, perfeitamente lúcida naquele momento único antes de exalar o ar pela última vez, olhou Joaquim e disse: “O meu segredo? Não preciso de o levar: sempre soube que foste tu quem roubou o mealheiro.” E em seguida morreu, deixando um sorriso doce a pairar sobre Joaquim.

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