Correio do Minho

Braga, terça-feira

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O misterioso desaparecimento de Hipólito Alvarenga

A responsabilidade de todos

Conta o Leitor

2019-08-19 às 06h00

Escritor Escritor

Ana Maria Monteiro

“ — Mariselda morreu.”- disse a voz, após ter-se certificado de que estava a falar com o Dr. Fernando Santos Vilela. Seguiu-se um pi, pi, pi intermitente, indicativo de que o telefone fora desligado. Número incógnito, impossível de identificar.
Fernando pousou o auscultador lentamente, tomado de um torpor súbito, assaltado por inúmeras recordações e pela necessidade de decidir o que fazer.
Viu de novo o homem sentado à sua frente trinta e quatro anos antes, quando ele próprio era ainda um jovem advogado inexperiente e surpreso perante o que lhe era pedido e oferecido – tanto por tão pouco! Ou não? Nunca chegara a saber. Até hoje, até este momento.
“— Penso que duzentos contos serão suficientes.” – dissera Alvarenga; Hipólito Alvarenga, assim se chamava. Fernando olhava-o atordoado “duzentos contos, uma fortuna!”.
Alvarenga propusera-lhe um encargo simples: guardar uma carta até ao dia em que fosse informado da morte de uma tal Mariselda, “— Nessa altura deverá reunir as pessoas cujos contactos aqui junto, abri-la e lê-la na sua presença. Além desta, enviar-lhe-ei ainda mais algumas que poderão também ser lidas ou não, consoante lhe pareça melhor e seja ou não a vontade dos presentes.”
— Aceita?
Fernando aceitou, claro.
— O seu compromisso limita-se a aceitar este encargo. Se cumprir o acordado, receberá outro tanto, acrescido de juros. Não voltaremos a ver-nos, desejo-lhe sucesso e felicidade, tal como parto em busca deles.
E retirou-se, deixando Fernando com um cheque de duzentos contos na mão e um enorme ponto de interrogação na cabeça.
Fernando nem dormiu nessa noite, tal a inquietação, e na manhã seguinte estava à porta do banco no momento da abertura.
A quantia recebida permitiu-lhe fazer coisas que de outra forma não poderia e, mesmo não tendo dado conta disso completamente, foi algo que mudou completamente todo o seu futuro. Para melhor? Para pior? Nunca sabemos, pois vivemos em linha reta, mas o efeito borboleta é tão ativo, absoluto e definitivo no presente, quanto o seria no passado.
Mas agora, trinta e quatro anos depois, vê-se confrontado com a necessidade de decidir entre cumprir o acordado há tantos anos ou o simples encolher de ombros e não fazer nada.
Decidiu cumprir a vontade de Alvarenga. O processo de encontrar as pessoas da lista foi complexo pois, se alguns tinham apenas mudado de residência, outros já haviam morrido. E havia ainda os descendentes, que Alvarenga também mencionara naquela curta e memorável conversa.
Quando finalmente conseguiu entender-se com todos quanto a um dia e local, deslocou-se até Coimbra (ponto mais axial entre todos) e o encontro ficou marcado para daí a uns dias, na casa da filha mais velha de Alvarenga.
À hora combinada apresentou-se no local, muito mais nervoso do que previra e também ele tomado de curiosidade quanto ao conteúdo daquela carta que nunca abrira.
Numa sala que não deixava dúvidas quanto à condição social e intelectual dos seus proprietários, foi-lhe concedido lugar central em uma mesa particularmente grande mas na qual, mesmo assim, os circunstantes tiveram de se apertar um bocado para se conseguirem acomodar.
Após uma breve introdução que deu lugar a inúmeras perguntas a que tentou responder de uma só vez, iniciou a leitura da carta,

Meus queridos:
Se agora estão a tomar conhecimento do conteúdo desta carta isso é sinal de que Mariselda morreu. E com ela também eu.
Tentarei dar-vos no instante atual a explicação para que não tive coragem até agora, pois sei que merecem saber a verdade e que eu próprio mereço também ser revelado hoje e merecerei no futuro, quando esta carta vos for lida pelo Doutor Fernando Vilela, que nunca saberá por que motivo o escolhi para isto.
Sempre vos amei. Que isso fique desde já bem claro para todos, sobretudo para ti, Armanda, minha amada esposa, mais claro para ti que para qualquer outra pessoa, pois que, além de abandonada, foste também a preterida. Amar-te-ei por toda a minha vida, querida companheira e mãe dos meus adorados filhos que agora ficam à tua exclusiva responsabilidade, abdicando deles com a segurança e o egoísmo de saber que não poderiam ficar mais bem entregues.
Mas existe a Mariselda, praticamente desde sempre. Não posso e nem quero continuar a ignorar essa realidade. A Mariselda é mais que amor, é diferente de amor, é o que necessito para ser eu próprio e sentir-me bem e não posso continuar a escondê-la e disfarçá-la do olhar de todos, não posso. Peço-vos que me desculpem e espero que no final desta carta consigam, ao menos, fazer as pazes comigo.
Também nunca vos abandonarei, apenas deixarei de estar presente, mas tenho a intenção de me manter a par de tudo e, se necessário for, regressarei de imediato. Mas com essa mulher extraordinária e maravilhosa que têm por mãe, estou certo de que passarão muito bem sem mim.
O que se passa é que sinto a absoluta necessidade (e até a obrigação) de viver com Mariselda e não posso levá-la para o seio da nossa família.
Então saio. Primeiro dar-me-ão por desaparecido e depois habituar-se-ão. Se durar muito tempo até que esta carta chegue ao vosso conhecimento, é bem possível que venham a acreditar que morri.
E é verdade: morri. Morrerei quando Mariselda morrer, pois sei que esta minha decisão é definitiva e que, mesmo que venha a sofrer momentos de dúvida, nunca me arrependerei.
Não poderia partir antes de vos garantir segurança e ficam com uma posição social e económica bastante confortável.
Não me recrimino por ser como sou, mas preferia que não tivesse sido assim, teria sido muito mais fácil e separar-me de vós seria uma possibilidade impensável. No nosso pequeno mundo esta coisa de alguém que é homem ter nascido e ser mulher com o corpo trocado, é inadmissível. Mas viver assim, como vivo, traído por esse corpo que é o que me permite existir mas em simultâneo me rouba a possibilidade de ser eu, é igualmente inaceitável.
Peço-vos desculpa por, num certo sentido, vos ter enganado por tanto tempo, mas foi penitência pesada o quanto isso me foi difícil e o que sofri para não vos magoar. Vou finalmente dar-me voz, ser a Mariselda que nasci.
Amo-vos e sei que me amam, morrerei com todos vós no coração e acreditando que poderei ir em paz e que me perdoarão.

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