Correio do Minho

Braga, terça-feira

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O 53, ou a Metafísica da Vida

A responsabilidade de todos

Conta o Leitor

2018-07-07 às 06h00

Escritor Escritor

Autora: Graça Santos

Era uma vez... (Sim, tenho a certeza que esta história deve começar pela expressão “Era uma vez”, pois ela empresta ao conto uma auréola mágica que cativa o leitor/ouvinte.) Pois então…
Era uma vez… uma menina, fofa, sorridente e amável que usava a imaginação como o ar que respirava. Na sua cabeça coabitavam múltiplas coisas numa amálgama a que só ela sabia dar sentido e catalogar, cuidadosamente, nas prateleiras e gavetas do pensamento, de modo que, rapidamente, as soltava e recriava consoante as necessidades do momento. Como exemplo, podemos relatar um dia em que Teresinha foi com a mãe à modista e esta lhe ofereceu restos de tecidos coloridos, estampados, floridos, lisos… Teresinha pôs-se logo a imaginar o que poderia fazer com estes materiais: roupa para as bonecas, um quadro composto com tecidos recortados, botões cozidos ou tecidos pintados com os seus novos pincéis e tintas, … fazer o revestimento do tampo do velho tambor ou uma cobertura, tipo manta de retalhos, para a cama das bonecas, … e a sua cabeça não mais parava de arquitectar construções. Até que ordenou a si mesma parar, arrumar os tecidos na gaveta dos materiais porque as aulas recomeçaram e não tinha que se distrair com outras coisas que não fossem os livros. Oh, mas, já que falou em livros, … (era-lhe impossível parar a imaginação, já se vê!) … e uma outra ideia acabou de irromper na sua imaginação - encapar os livros com os tecidos, numa combinação de lisos com axadrezados ou estampados! Ah! E uma outra vinha a caminho: pedir à mãe que lhe costurasse um saco-porta-livros feito de pequenos retalhos. Como seria elogiada até, quem sabe, invejada pelas colegas, devido à originalidade dos seus materiais escolares! … - pensou.
- Pronto! – disse abanando a cabeça como que a despertar do sono fantasioso. Arrumou os tecidos no pensamento e na gaveta do armário e lá partiu para os trabalhos de casa.
II Teresinha-Menina gostava muito da Matemática, por isso começou primeiro por fazer as contas dos deveres escolares: somar, subtrair, dividir, multiplicar… com ou sem decimais, raiz quadrada, números ao quadrado, expressões, equações, provas reais ou dos noves, … e quanto maiores e mais difíceis fossem os números dos exercícios, tanto maior era o divertimento que retirava deles.
Teresinha cresceu e nunca mais se desabituou de brincar com os números, com as palavras cruzadas,… ou com qualquer outro desafio que aparecesse plantado nos jornais e revistas. Devorava todos e todos também lhe serviam como descontracção no W.C., na hora de fazer funcionar o seu intestino preguiçoso, por ser nervoso e inquieto, sempre com tanta pressa para se evadir, mesmo sem cumprir a finalidade para que fora criado.
III Porém, Teresa-Mulher, a certa altura da sua vida reparou que no universo infinito dos números com que se cruzava, lhe surgia com frequência uma combinação de dois dígitos: o “5” e o “3” que davam o 53 ou invertidos o 35. Primeiro achou graça, até porque ela já era fã do número 13, que também termina em 3, e nunca para ela associado a azar, antes à sorte. Olhem só se lhe saísse um treze no totobola!
Depois, progressivamente, foi reparando que a combinação “53” estava no número da sua porta de casa, nos relógios digitais quando, ocasionalmente, olhava para as horas – 8:53, 9:53, 10:53, ...nos segundos do micro-ondas sempre que aquecia o leite do pequeno almoço 07:53, no cartão da associação profissional de que fazia parte 5363, do número da segurança social 0053..., nas matrículas dos carros com que se cruzava por diversas vezes ao longo do dia: 64-53-OO, ZA-35-28, 44-BO-53; nas senhas das filas de espera na charcutaria do supermercado, na peixaria, na tirada se sangue para análise, nos correios… 053, 453, no número do grupo de escuteiros a que pertenceu, na quantidade de participantes do evento que organizou e até, sem escolha, numa fracção da lotaria que comprou a um vendedor de rua “35153” premiada com duzentos euros num momento de muita necessidade económica!
Ah! Também completou 53 anos de idade!
Desde então, o assunto, passou a deixar de ter graça para se tornar num assunto sério. O que quereria dizer o “53” na sua vida?
Cada dia que passava, tentava encontrar a combinação “53”. E se o número não aparecesse em estado puro, recorria ao seu pensamento matemático: subtraia, somava, multiplicava ao dividia, mentalmente, e lá aparecia ele. A busca tornou-se de tal forma obsessiva que Teresa, racional, mandou-se parar para pensar. O pensamento decidiu que ela deveria partilhar a experiência com alguém. Então escolheu a melhor amiga para lhe confidenciar o “segredo” e ouvir a sua opinião sobre o assunto, correndo mesmo o risco de ela a achar ridícula, pueril, nesta mania incessante de buscar o “53”. A amiga Lena achou graça e riu-se a bandeiras despregadas. Depois, vendo o ar sério de Teresinha, suspendeu o riso e deu a sua opinião. Achou que ela podia estar mais sensível ao número e que, por isso mesmo, o encontrasse continuamente. De tal modo fixada no 53, era possível que já nem prestasse atenção ao aparecimento de outras ocorrências numéricas. Aconselhou-a, então, a procurar outros números e a verificar, comparativamente com o 53, o seu aparecimento.
- Já agora, não queres sugerir tu o número que devo procurar, para eu não voltar a correr o risco de arranjar outro número simpático com que me identifique e enviesar o resultado? – pediu Teresa.
-Claro, o 16, é o meu dia de aniversário, respondeu Leninha.
Teresa respirou fundo, aliviada com a partilha e a sugestão da amiga para a ajudar a desvendar o mistério.
IV No dia seguinte levantou-se desperta para o 16. Mas nada, era o 53 o que continua a evidenciar-se nas expressões numéricas com que se cruzava. As matrículas dos carros eram o espaço favorável a tais ocorrências…
- Ah, vai ali um 16!
Não obstante, no final do dia, tinha vencido o 53. Continuou então a busca nos dias que se seguiram. E ou ganhava o 53 ou empatava com o 16. Até que um dia o 16 estava a ganhar. Teresinha pensou que a Lena tinha razão: havia-se fixado no 53 e afinal qualquer outro número poderia aparecer, desde que estivesse desperta para ele. Neste preciso momento surge diante de si e pela primeira vez a matrícula QS -53 -53. Se Teresa tinha dúvidas, desvaneceram-se aqui e agora. O “duplo 53” vinha responder às suas inquietações, desanuviar as dúvidas e afirmar, de uma vez por todas, a supremacia deste número na sua vida. Desde então passou a olhá-lo como um aliado, um amigo, … personalizou o 53. A sua aparição significava para ela um bom presságio e se, por ventura, num dado dia ainda não havia tomado contacto com o 53 ficava preocupada, apreensiva, sabia que as coisas não iriam correr bem. Até quando jogava à Sueca, ao domingo à tarde, em família – uma sequência de “5” e “3” na mesma pinta traduzir-se-ia num bom resultado, no final do jogo. E assim passou a viver e a ler a presença do 53 na sua vida – mais um amigo, um amigo silencioso mas muito reconfortante. Costumava cumprimentá-lo logo pela manhã, despedir-se dele à noite, confidenciar-lhe a sua vida, durante o dia, … Com ele dialogava a propósito de tudo e de nada como poderemos ver numa tarde invernosa de domingo em que Teresinha, deleitada a ver televisão, reparou nas horas patentes no mostrador electrónico do vídeo instalado na prateleira acima do televisor. Eram 15,30. Pouco depois levantou os olhos eram 15,35. Um pouco mais tarde, noutro esgar do olhar, 15,53.
- Arre, pensou, o que queres 53? Fazer-me companhia? - E lá toca a conversar com o 53 como se de gente se tratasse.
V Num momento desamparado da sua vida, enquanto conduzia mecanicamente sem ver o que se passava à sua volta, surgiu-lhe à frente um carro antigo, bizarro, que lhe chamou a atenção pela descontextualização, pois mais parecia um veículo saído dum filme americano doutra era. Instintivamente olhou a matrícula: SE-53-53. Logo sorriu, desanuviou e achou:
-Deixa lá o “se”, as dúvidas que te assolam, olha para o 53, vem reforçado! Tudo correrá bem, confia!
Como esta, situações idênticas foram passando na vida de Teresa e ela li-as sempre como um conforto nas suas preocupações. O 53 passou a ser o seu grande aliado, o amigo silencioso que a confortava nos momentos da mais íntima solidão.
VI Porém um dia, Teresa, agora e outra vez, Teresinha (trato carinhoso com que era obsequiada no Lar de Seniores para onde tinha sido levada por força das disfunções inerentes à longevidade) viu-se a braços com a perda de memória. Quer dizer, ela não - já que se havia esquecido do que era ter problemas, mas a família. Sim, os filhos, as noras, os genros, os amigos mais próximos sofriam ao vê-la desfocada da realidade dos que tanto amara.
Rostos e nomes perdera-os quase por completo. Já em nova a memória se revelava deficitária nesta área! Contudo, como estarão recordados, a sua mente fluía livremente nos jogos numéricos e nas operações matemáticas, tendo como número predilecto o 53.
E não é que o 53 continuou a despertar-lhe a atenção, revelando-se o fio de ligação à vida real, tornando-se no único motivo que a catapultava da inércia e passividade em que caíra, fazendo-a reagir a estímulos externos, a esboçar um sorriso, a praticar acções elementares de sobrevivência, como se alimentar!
Por isso, quando perceberam a “ponte” que o 53 constitua na ligação de Teresinha à forma de vida que vulgarmente conhecemos, quase todos os membros da família, sempre que a visitavam no Lar, tinham o cuidado de a presentear com alguma forma do “53”.
E para os seus, era um consolo ver Teresa-Teresinha de sorriso rasgado, deliciar-se com os biscoitos em forma de “5” e de “3” que o neto mais novo lhe confeccionava e oferecia.
Quiçá a materialização mais pura da presença carinhosa de Deus na sua vida!

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