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Fragas intemporais

A responsabilidade de todos

Fragas intemporais

Voz aos Escritores

2019-02-08 às 06h00

Fernanda Santos Fernanda Santos

Nós somos casas muito grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas.
António Lobo Antunes

Com a porta de entrada completamente escancarada, dirijo-me aos meus leitores com olhos postos num singelo poema de Aida Araújo Duarte, sobre a terra que nos viu nascer e que jamais se extingue em nós: Maçores perdida/ Nas fragas sem nome/ Caminho de estevas/ Giestas meninas/ Neste chão/Onde vim parar./ Pássaros que moram/Para lá do céu/Neste lugar monge/Recolhido em si/Em prece vos peço/Levai os meus olhos/Tirai-os do chão./E de alma lavada /Adormeço dores/Feridas abertas/Seguindo este voo/ Leve colorido/Das aves do céu/E a aragem bendita/Deste amendoal.
Sentada agora no velho alpendre (raros são aqueles que se sentam nas suas varandas, ou à janela a conversar e a contar histórias, ou simplesmente a contemplar as flores dos jardins), imagino-me a contar histórias sobre o amendoal da minha infância aos netos que ainda não são meus. Sinto-me avó. E até me parece ouvir uma voz doce e pequenina: “Ó avó, conta uma história. E a seguir outra…”
As avós foram feitas para contar histórias. Ninguém sabe contar histórias como as avós. As avós sabem que não podem abrir só o livro e por isso abrem também o coração. As avós nunca têm pressa. Sabem que as coisas feitas à pressa para ganhar tempo são aquelas que o tempo apaga mais depressa. Por isso, as avós demoram as palavras. Demoram as palavras para demorar o amor. Só o amor que leva tempo resiste ao tempo. Assim, quando a história acabar, as avós ficam. A sua voz doce permanece. Era uma vez uma jovem rapariga, trigueira e de faces rosadas, que andava num amendoal. Apesar da árdua labuta, cantava. Conta outra vez essa, avó. E a avó volta ao início da história e há cheiro a amêndoa-doce no ar.
Saudades dos velhos tempos. Mimos de infância. Lembranças.
Por instantes, vi a paisagem invernal aquecer, com tons amenos, o nevoeiro que, levemente, pousava sobre o vale, fazendo com que o chá de camomila fumegante me parecesse ainda mais agradável. Quem se posiciona com calma para sentir sabe que o interior é o lugar ideal para aquecer ideias, emoções e pensamentos. Sabe que o interior tem silêncios, tem pureza, tem um traço genuíno que se vê nos olhos emoldurados por rugas e por alguns lenços pretos. Sabe que o interior se sente num aperto de mão capaz de selar compromissos para a vida, herança da firmeza das fragas dos montes, habituadas à aspereza das geadas.
Bem ao fundo da serra, surge Maçores, terra de moleiros, encontrando-se protegida pelas fraldas do Monte Ladeiro, tendo a ribeira de Santa Marinha a rodeá-la. E lá estão os vestígios dos moinhos dos nossos avós paternos, escondidos entre folhas amarelecidas. É neste preciso momento que, nas nossas memórias, a ribeira escorre brilhante pelas encostas da serra/trazendo do seu cume a pureza dos céus/ contemplo/ e sacio a minha sede nas suas águas/ afogo a nostalgia/. Da agueira para a calha e desta para o rodízio./ Depois as pedras giram,/ esmagam o grão/ e a farinha cai, cai,/ enchendo o saco de linho.
“Quando tem água bebe vinho, quando não tem água bebe água”, assim se contava antigamente da profissão de moleiro, dito justificado no leito de água que fazia o moinho trabalhar, que quando secava não permitia que o grão passasse a pó e deixava o moleiro sem rendimento. Os moinhos, engenhos hídricos introduzidos por romanos e árabes em diferentes períodos na Península Ibérica, proliferaram em Trás-os-Montes, utilizados na moagem do cereal, nomeadamente do trigo e do centeio. Atualmente, as pequenas construções do nordeste transmontano encontram-se maioritariamente em ruínas, tal como o moinho dos meus avós, na Ribeira de Santa Marinha. É neste embalo de memórias que somos transportados para o passado, numa viagem onde a memória projetada numa ambiência mágica e fantasmagórica, dá origem a diversos regressos: regressamos à terra natal, à casa natal, reconhecemos os traços da infância nos objetos, nas pedras de xistos, nas ruínas dos moinhos, no pó espesso que os cobre, na luz filtrada pelos postigos e janelas sem vidraças, no silêncio da noite. A paisagem reconhece-se nas suas raízes e o povoamento enche-se de lembranças.
Assim, lembro-me de a minha mãe me ter contado que no período de racionamento durante a Segunda Guerra Mundial, em que muitos agricultores escondiam parte da sua produção para não serem obrigados a entregá-la na totalidade, os moinhos eram a tábua de salvação para muitas famílias, evitando, assim, passar horas na "bicha do Paiva", na vila sede de concelho, com a senha de racionamento na mão ("Cuidado, não a percas") para receber um codorno de pão de centeio.
Foi um tempo muito difícil. Havia
problemas de escassez de géneros (Portugal era deficitário quanto a alimentos) e a inflação disparava sem dó nem piedade. E a nossa terra era fértil e produtiva!
A este respeito, surge-me a ideia de referir as ruínas da fábrica de cobertores da aldeia de Felgar, concelho de Torre de Moncorvo, consideradas únicas na história da antiga indústria nacional têxtil. Hoje, estão votadas ao abandono as ruínas desta antiga fábrica de cobertores localizada na Ribeira dos Moinhos, Felgar, cuja produção parou na década de setenta. Um investigador da Universidade Católica do Porto defende a preservação deste património industrial da região face à sua importância nacional, tanto mais que chegou a ser uma das unidades têxteis com o maior volume de negócios no Norte, nos finais do século XIX. Era, na altura, dos maiores volumes de negócio do distrito no setor têxtil, superior ao realizado com a indústria da seda em Freixo de Espada à Cinta. Laboravam cinco teares, uma cardadora e um aparelho de fiação, produzindo, em média, quinhentos cobertores por ano.
Por se tratar de um legado do património nacional industrial, a sua valorização é uma questão de todos nós. À janela do tempo, eu vou dando um singelo contributo

Sopro a brisa
madrigal
rodopio
em folhas de arçã
e cubro-me de giestas
nas fragas intemporais.
Fernanda Santos, Gelosias ao Luar

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