Correio do Minho

Braga, terça-feira

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Construção

A responsabilidade de todos

Conta o Leitor

2018-07-10 às 06h00

Escritor Escritor

Autor: António Santos da Silva

Percorria o mesmo caminho de todos os dias na rotineira displicência com que unia dois pontos que sentia cada vez mais afastados. Era um percurso curto, pouco mais de quinze minutos, intervalado aqui e além por breves paragens da hora de ponta matinal.
Eram já tantos anos em que repetia os mesmos lugares, às mesmas horas que, uma vez por outra, não oferecia resistência a breves momentos de insanidade e guiava-se de olhos fechados. O que, em boa verdade, acontecia diariamente. Não na sua expressão literal, mas no absoluto alheamento relativamente a tudo que estava à sua volta.
Não obstante, por vezes, quando a fila se movia mais lentamente, aproveitava para espiar quem circulava do outro lado da estrada. E imaginava que pensamentos assaltavam aquele homem de aspeto maduro que cofiava o bigode, como se na mecanicidade do gesto, reproduzisse uma vida sem alma. Ou daquele outro que procurava calar os seus fantasmas elevando o volume da música até aos limites do impossível, recebendo olhares reprovadores de quem se sentia incomodado pela estridência que se escapava pelas janelas atrevidamente escancaradas numa fria manhã de Outono.
E o que pensaria aquela mulher que, de olhar fixo num qualquer ponto à sua frente, ignorava em absoluto o olhar de convite que ele acabava de lhe lançar?...
Tanto quanto pôde observar nos breves segundos em que os seus carros estiveram lado a lado, pareceu-lhe encontrá-la na idade madura. Naqueles anos em que as formas juvenis começam o lento mas inexorável processo de recriação. Quando no rosto surgem as primeiras ameaças de ruga, aqui e além disfarçadas por ténue maquilhagem. Ou quando acontece o nascimento das primeiras madeixas naturais que tanto assustam qualquer mulher, mas que ele tanto apreciava. Ou ainda quando se percebe que aqueles seios que se destacam do corpo, já mascaram a exibida segurança com o incontornável concurso de um qualquer sutiã que a estrela das passerelles exibe no cartaz da paragem de autocarro por onde ele acabava de passar.
Lembrava-se ainda de um último pormenor que conseguiu reter nos breves segundos em que espiou a metade visível desse corpo feminino. E que ele mais tarde tentaria recriar. Esse corpo feminino fugazmente presente ao seu lado numa qualquer manhã. Como sempre aconteceu com os grandes amores que também o construíram naquilo que hoje diz não ser e que agora alimentavam o melhor das suas memórias. Ou as mais dolorosas frustrações de uma vida onde era quem não é. Tempos sempre fugazes. Como se ele desmerecesse a atenção das mulheres que se cruzaram nos seus dias. Em estradas paralelas. Presas nessa inevitabilidade geométrica. Sempre paralelas. Jamais se encontrariam. Da mesma forma que ele nunca as encontrou. E que elas não o quiseram encontrar.
E foi essa última imagem que o fez regressar ao passado.
Via-se de novo há bastantes anos. Era início de Primavera? Lembrava-se apenas que o Sol não conseguira amenizar por completo uma manhã relativamente fria. E agora ele resiste à vulgaridade de afirmar que a presença dela lhe aquecera a manhã. A memória que tantas vezes o atraiçoa e lhe reconstrói tempos e espaços, guarda muito claramente essa primeira vez em que a conheceu. É verdade. Na primeira vez em que a viu! Porque, nos anos que os trouxeram até hoje, foram incontáveis os dias em que julgava vê-la pela primeira vez. Esses dias, efémeros, em que ela lhe retribuía um sorriso ou aceitava os olhares apaixonados com que ele a desafiava a acreditar nas palavras de genuína admiração que lhe devotava. Quando lhe elogiava a roupa que ela vestia e que ele se imaginava tocar. E despir… Controlando-se nessa incontida vontade de lhe percorrer esse corpo que ele imaginava a seu lado. E que contemplava, afagava, beijava… E possuía… Em viagens do mais absoluto deleite. Sem qualquer palavra pronunciada, mas que ela saberia escutar o quanto ele lhe dizia no olhar lânguido com que a amava enquanto lhe beijava delicadamente os mamilos. Ou enquanto passava a mão pelos caracóis dos seus cabelos. Todos os seus cabelos…
Voltava à estrada diária. Tinha abrandado a marcha como se recusasse afastar-se dessa metade de mulher que descobrira no outro lado da via paralela àquela em que exauria os seus dias.
O cabelo… Os caracóis…
Digladiavam-se agora as memórias. Confundia-se nos diferentes tempos por onde viajava. Nos dissemelhantes lugares que vivera e nos que sonhara viver. Não conseguia colocar ordem nas múltiplas imagens que lhe perturbavam a memória. Havia os cabelos. Havia os caracóis. Mas o resto do corpo… Não era único. Duas mulheres apareciam-lhe em simultâneo ou alternavam-se. E que ambas muito desejara. E que agora lhe atormentavam os dias lembrando-lhe como não soubera conquistar o que tanto desejava. E como não soubera conservar o que tanto conquistara.
Procurou exilar-se desses tempos em que erigiu felicidade, mas que agora só lhe alimentavam desilusões. Estava longe. Como se não existisse. Regressava-se ao quarto de motel onde a amara pela primeira vez. E outra. E mais outra. E onde agora só ama as memórias. Onde, mesmo sabendo que esse tempo chegaria, não a “amou daquela vez como se fosse a última”. E como ele se angustia de não ter prolongado essas horas naquele início de tarde que foi noite. Escura. E que até hoje não clareou. Ao mesmo quarto de motel onde nunca amou aquela que primeiro conheceu. Num início de Primavera?, quando o Sol não conseguia amenizar por completo uma manhã relativamente fria…
Falava agora com ela. E queria gritar-lhe o que sempre se acobardou de lhe dizer. Naquelas conversas circunstanciais, mas em que a procurava convencer do quanto lhe queria. Quando lhe apertava a mão, dizendo-lhe, Quero-te! Quando nos encontros sociais trocavam dois beijos e ele se martirizava por não ser capaz de trocar a face dela pelos lábios em que ele mais desejava perder-se. Com a desajeitada incapacidade de avançar, subjugado a uma razão que só o fazia recuar.
Agora desafiava-a. A que se deixasse amar. Abandonando-se nos beijos que ele depositaria por todo o corpo. Nos lábios que ele nunca beijou. Nos seios que ele adivinhava maduros. Naqueles outros caracóis que ele sonhava encontrar. No centro do corpo dela. Maduro e doce. Queria amá-la. Percorrendo-a. Afagando-a. Tendo-a. Dando-se.
Era madrugada. Via-se a vaguear pela casa. Como se procurasse dissipar as nuvens negras que se interpunham entre si e a luz. E pensava nela. Dormiria? Entrelaçada noutro corpo que a soubera merecer? E ele abandonava-se na imaginação do que nunca teria. Ela. Que ele tanto queria. Aconchegando-se no seu corpo maduro que já fora juvenil. Amadurecido pelo muito que teve de quem a amou. E a teve. E do muito que ainda poderia ter de quem a quer amar. E que não a terá. Esse corpo maduro que ele reconhece fazer-lhe ferver o sangue no desejo inesgotável de a possuir.
Continuava a falar com ela. E ela não o ouvia. E friamente o ignorava. E enfadava-se. Como sempre o fazia quando ele se julgava suficientemente forte para a convidar a amarem-se.
E ele falava. E ela não o ouvia. E friamente o ignorava. E enfadava-se.
E ele falava. E ela não o ouvia. E friamente o ignorava. E enfadava-se.
E ele falava. E ela não o ouvia. E friamente o ignorava. E enfadava-se.
Sobressaltou-se e deu consigo parado no ponto de chegada. Como sempre foram os seus dias de desamor. E regressou das memórias, tropeçando “no céu como se fosse um bêbado”. E não “flutuou no ar como se fosse um príncipe”. Como se temesse “morrer na contramão, atrapalhando o tráfego”.
E assim se destinou no mesmo lugar de sempre. E abandonou-se perdido como se fosse “chão feito um pacote flácido.” E “soluçou como se fosse um náufrago”.
“Deus lhe pague!”

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